Rorschach: o teste que revela a mente de criminosos perigosos

Um morcego, um pássaro e uma borboleta. Um tapete de peles, um animal atropelado e uma mancha de sangue. Dois elefantes encostando suas trombas e um rosto de um velho assustado. Às vezes, simplesmente nada. Noutras, tudo ao mesmo tempo. No fim, o que o paciente diz que enxerga nas manchas das dez pranchas do Teste de Rorschach revela muito mais sobre o que há dentro de sua própria mente do que o próprio borrão. Por isso, essa técnica é uma aliada poderosa quando se lida legalmente com criminosos perigosos, como assassinos e molestadores.

O exame é considerado o “padrão-ouro” para avaliar a personalidades, simplesmente por ser um dos melhores para isso. Ele é classificado como um teste do tipo projetivo, isto é, que o paciente deve “se colocar” naquele instrumento que está sendo usado na avaliação. Dessa forma, não há uma “resposta correta” no que se vê nas dez pranchas, pois a subjetividade do paciente é muito mais importante na hora da avaliação. Contudo, não é apenas a resposta em si que é importante: o tom de voz, a linguagem corporal e o tempo para responder também são levados em conta na hora pelo avaliador na hora da avaliação. 

Durante muito tempo, os avaliadores “protegiam” as dez lâminas, sendo que as divulgadas pela grande mídia eram variações das originais. Isso ocorre porque a precisão do teste depende muito do fator ineditismo. Portanto, qualquer conhecimento prévio sobre a testagem pode acabar contaminando a qualidade do diagnóstico, prejudicando tanto o avaliador quanto o avaliado. Isso sem contar o fato de as pranchas possuírem uma padronização de tamanho e cores, sendo necessário que sejam impressas por uma editora licenciada. 

A psicóloga e perita judicial, Daiana Schultz destaca que informações preliminares trazem um viés para todo e qualquer tipo de testagem, comprometendo a precisão tanto de um teste psicológico como esse, quanto de “uma prova de matemática”, por exemplo. 

– Cabe ressaltar que nenhuma avaliação psicológica é realizada com a aplicação de somente um teste. Normalmente, usa-se dois a três testes diferentes que utilizam outras formas de análise, como a psicometria. Tudo vai depender do objetivo da avaliação, ou seja, qual a pergunta que queremos responder através do processo -, esclarece Daiana.

Dessa forma, o Teste de Rorschach não é o único do tipo projetivo a ser utilizado na avaliação psicológica de pessoas envolvidas em crimes violentos. De acordo com o Art. 13 da Lei 4.119, texto referente à profissão de psicólogo, o uso dos testes psicológicos é privativo dos profissionais, que devem avaliar qual é a melhor metodologia para elaborar o diagnóstico do paciente. Portanto, o uso ou não dos borrões de tinta fica a critério do avaliador.

Daiana opina que, em um cenário ideal, as pranchas deveriam ser utilizadas em todos os casos que o criminoso apresenta comportamento considerado antissocial. Contudo, dentro dessa área existem diversos trâmites burocráticos e governamentais envolvidos. Além disso, são poucos psicólogos que se especializam em testagem clínica e menos ainda os que são qualificados para avaliar a mente dos pacientes com esse instrumento. 

– Um dos último manuais do teste que foi traduzido, validado e normatizado para o público brasileiro foi o R-PAS. O valor de compra só dos manuais é de quase R$ 2000. Só as pranchas oficiais para a aplicação (que sem ela não realizamos nada) custam em torno de R$ 900. Isso tudo fora os mais de dois anos de especialização… Aí você tem uma ideia de quão custoso é -, destaca Daiana.

No Brasil, os locais que mais concentram os estudos e congressos na área são a Sociedade Rorschach de São Paulo e a Associação Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos (ASBRo). Contudo, os profissionais que desejam trabalhar com essa técnica tendem a buscar a especialização nos Estados Unidos e na Europa, apesar da disciplina normalmente ser ensinada nas faculdades. Isso torna muito difícil mensurar quantas pessoas são especializadas na aplicação e avaliação no país, pois não é necessário que os profissionais se registrem em nenhuma dessas entidades e o Conselho Federal de Psicologia não possui um cadastro específico para isso.

No Judiciário brasileiro, existem profissionais que são concursados pelos tribunais e profissionais “avulsos” que oferecem serviços de avaliação como credenciados. Contudo, em nenhum destes grupos é exigido que eles tenham o curso de especialização em Avaliação Psicológica – fato criticado por especialistas. No Rio Grande do Sul, por exemplo, as pranchas só são utilizadas quando solicitada ao Instituto Psiquiátrico Forense uma avaliação psicológica no contexto criminal. Porém, a utilização ou não dessa ferramenta fica a critério do avaliador, sendo possível que essa em particular não seja utilizada.

Na Justiça

Em maio de 2018, Suzane von Richthofen, condenada por ser a mandante do assassinato dos próprios pais em outubro de 2002, em São Paulo, foi submetida ao Teste de Rorschach antes da Justiça emitir qualquer decisão sobre sua liberdade condicional. O nome da psicóloga indicada pelo Judiciário não foi divulgado, mas o diagnóstico elaborado, com base nas respostas que obteve, indicou que Suzane possuía uma “personalidade manipuladora” e “agressividade camuflada”. Em outras palavras, isso indicava um perigo para outras pessoas, portanto a Justiça negou a progressão de pena.

Um teste psicológico para avaliação forense nunca é utilizado de forma isolada e no caso de Suzane von Richthofen não foi diferente. As pranchas de tinta entraram em jogo pelo fato de testes aplicados anteriormente mostrarem resultados que deixavam margem para dúvida sobre a possibilidade dela retornar ao convívio social. Muitos especialistas afirmam, de forma poética, que as manchas são como um “raio-x” da psique que pode acabar servindo como uma contraprova em casos como esse.

Segundo a vice-presidente da ASBRo, Sonia Rovinski (que também já trabalhou para o sistema penal gaúcho), a atividade do psicólogo junto à Justiça possui uma premissa muito importante: nenhum tipo de teste, independente de qual seja, será a resposta direta para uma demanda legal. Dessa forma, não existe uma relação entre o que é solicitado, o tipo de crime cometido pelo infrator e a forma de avaliação que vai ser empregada. No caso de Suzane von Richthofen, os psicólogos decidiram pelo emprego do Teste de Rorschach pelo fato de terem encontrado em diversas questões com relação a manipulação de avaliações anteriores. Em tese, ele é mais difícil de se forjar uma resposta que induz o analista ao erro.

– Para cada tipo de análise podemos identificar instrumentos que se mostram mais adequados à sua especificidade. Psicólogos não trabalham com estereótipos de “homicidas, mas com pessoas que cometeram homicídio. Saber como utilizar os testes de forma produtiva para a investigação sem causar discriminações ou danos à pessoa exige mais do que a formação específica em cada um deles, exige uma boa formação em avaliação psicológica -, destaca Sonia.

No verão entre os anos de 1998 e 1999, na cidade de Rio Grande, um assassino que ficou conhecido como Maníaco do Cassino matou sete pessoas na praia que acabou criando o seu apelido. Paulo Sérgio Guimarães da Silva, também conhecido como Titica, nasceu em 1971 e trabalhava como pescador até 1989, quando foi preso e condenado por tentativa de homicídio. De acordo com relato de colegas de cela da Penitenciária Estadual de Rio Grande, ele apresentava um comportamento narcisista e tinha o costume de se vestir como o personagem fictício dos filme de ação Rambo, interpretado por Sylvester Stallone.

Durante o julgamento de Titica em 2002, condenado a 184 anos e 10 meses de prisão na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas, a avaliação psicológica feita no IPF foi um dos maiores pesos para a condenação, de acordo com o promotor Márcio Schlee, que trabalhou no caso. Não há confirmação se o Teste de Rorschach foi utilizado para a elaboração do diagnóstico, mas reportagens da época afirmam que foram utilizados testes do tipo projetivo semelhantes.  

– O laudo do IPF foi muito importante, pois às vezes a pessoa pode cometer um crime por estar em um momento difícil da vida e acabar cometendo um erro, mas o diagnóstico do Titica apontou problemas mentais. O histórico dele corroborou com a análise dos peritos e eu briguei pelo que estava no laudo pericial: ali dizia que ele não poderia voltar a conviver em sociedade -, destaca o Dr. Schlee.

O promotor Márcio Schlee comenta que, em seus anos de atuação na promotoria, já se deparou com situações contrárias a que enfrentou nesse caso: advogados já tentaram “aliviar a barra” de pessoas que haviam cometido crimes, como homicídios ou estupros, justamente apresentando um diagnóstico psiquiátrico apontando incapacidade mental. No entanto, na maioria das vezes, esse tipo de laudo era feito de forma particular e não pode ser usado como fator determinante. Nesses casos, a própria Justiça deve solicitar um exame psicológico. 

Além disso, o promotor também destaca que houve uma época, nos anos 2000, que a estrutura do IPF para tomar conta de pacientes criminosos estava tão precária que as teses de incapacidade mental começaram a ser rejeitadas pelo Judiciário. Houve casos que o condenado era encaminhado para o local, mas sem um prazo de soltura, o que começou a deteriorar o sistema conforme o tempo foi passando. Atualmente, esse tipo de proposta é vista com mais cuidado pelos magistrados visando as questões de logística. A direção do IPF não se manifestou sobre essa questão.

Criador e criatura

O teste do borrão de tinta leva o nome de seu criador: Hermann Rorschach. O psiquiatra suíço nasceu em novembro de 1884, em Zurique, no seio de uma família cercada de artistas e eruditos, o que serviu de influência para, anos mais tarde, criar o seu famoso exame. Ele faleceu em abril de 1922, aos 37 anos, em decorrência de complicações de uma apendicite. Um fato polêmico é os amigos e colegas do psiquiatra culparam a esposa dele, Olga Stempelin, pelo ocorrido. Ela foi acusada de negligência quando o marido começou a se queixar de dores abdominais, não exigindo que ele fosse se consultar e deixando que passasse os dias daquela semana deitado na cama.

A utilização de manchas em avaliações psicológicas não foi algo que o psiquiatra foi pioneiro, mas antes disso a técnica era usada como um mero indicativo da “criatividade” do paciente. O que ele foi percebendo é que, unindo as teorias psicológicas desenvolvidas na época, a utilização desse recurso poderia revelar “algo mais profundo” sobre a psique da pessoa. Desse modo, em 1917, uma das primeiras ações de Rorschach foi padronizar as manchas de tinta para que os resultados fossem mais fáceis de serem mensurados – sendo as mesmas até hoje. Logo em seguida, foi dado início a escrita do livro “Psicodiagnóstico”, que foi publicado em 1921. 

Curiosamente, o título do livro foi dado pelo editor do volume, o que desagradou o autor. Segundo o psiquiatra, “Psicodiagnóstico” dava um caráter muito determinista para a ideia geral do seu trabalho, quando ele mesmo admitia que se tratava de uma proposta para ser discutida entre a comunidade médica. O editor argumentou que os outros títulos propostos eram pouco atraentes para os compradores. A contragosto, Rorschach acabou cedendo.

O teste ganhou inúmeros adeptos ao redor do mundo e os estudos em cima do trabalho continuaram nas décadas seguintes. Um dos motivos que fez sua fama é foi a valorização que os Estados Unidos passou a dar para a saúde mental após a Segunda Guerra Mundial. Nessa época, os assistentes sociais ganharam um status de “amigos” da população e alcançavam um grande resultado no ânimo das pessoas – e de forma mais barata e com menos anos de estudo. Nesse contexto, os psicólogos e psiquiatras começaram a temer a perda de espaço e descrédito pelo trabalho exercido. As manchas de tinta acabaram sendo uma alternativa para sobrevivência do trabalho, pois apenas um profissional qualificado que saberia conduzir um teste como aquele. 

Contudo, foi apenas na década de 1970 que o tudo começou a ganhar uma estrutura mais organizada e normativa. Até então, não havia uma padronização das interpretações além das premissas deixadas pelo criador em seu livro. Foi o psicólogo norte-americano John E. Exner Jr. que criou uma metodologia mais objetiva em cima dos resultados apresentados pelos pacientes, deixando o diagnóstico mais claro. Atualmente, o padrão desenvolvido por Exner é o mais utilizado pelos analistas, inclusive no Brasil.

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