Parece chimia de morango derramada

Em algum dia de verão, anos atrás, eu passei um dia com um casal de amigos para desfrutar de jogos antigos de videogames que jogamos em nossa infância. O apartamento da menina ficava em um pequeno condomínio fechado na zona norte de Porto Alegre. Próximo dali, havia um descampado com uma pequena comunidade marginalizada — papeleiros, carroceiros, recicladores, traficantes, etc. Ao longo daquelas horas, ouvimos alguns disparos vindos de lá.

Confesso que aquilo me deixou um pouco incomodado, mas minha amiga parecia estar indiferente. Meu amigo também não parecia estar ligando. E fazendo uma rápida recapitulação, nem mesmo somando todas as visitas ao meu finado avó na favela que morava, em São Paulo, ouvi tantos tiros como ao longo daquele dia.

Em determinado momento, quando já havia anoitecido, ocorreu algo um pouco diferente. Novos disparos foram efeituados, mas sequência não foi esporádica ou com uma cadência rápida e curta como nas outras vezes. Ouvimos o primeiro e depois vieram outros três após um intervalo de uns quatro segundos. Por fim, outros dois tiros rápidos após outro intervalo curto.

— Agora executou né, meu filho? Por favor, depois de tudo isso — soltou meu amigo, o que fez a namorada rir um pouco. Eu me forcei a dar uma risadinha, mas aquilo me deixou intrigado. Mas não incomodado, veja bem.

Nunca fui uma pessoa de humor muito saudável. Sou capaz de extrair piadas consideradas de mau gosto e ofensivas das coisas mais absurdas que se possa imaginar, por mais que sejam raras as vezes que exponha isso. Uma vez desabafei com uma amiga que era muito difícil ser eu por causa disso. São piadas geniais, eu sei disso, mas eu posso expor isso de alguma forma? Não. Acho que nem mesmo quando o cancelamento era moda eu poderia expor tudo isso sem o risco de processo ou qualquer outra coisa do tipo.

Exemplo: uma vez que conheci uma mulher descendente direta de indígenas que era mãe solteira de um menino loiro de olho azul, sendo que em nada a criança se parecia com ela. Naquele mesmo instante me veio na cabeça a conclusão: “ela é um resumo da história do Brasil — uma índia que foi engravidada por um cara branco que logo depois a abandonou e deixou a própria sorte para criar o filho”. É uma piada de mau gosto que eu pensei comigo mesmo? Totalmente. Eu ligo? Nenhum pouco. Esse é o nível do meu humor e por isso não tendo a expor muito isso.

Porém, no caso de assassinatos sempre é um pouco diferente.

Não sei se o leitor já teve o desprazer de receber aqueles vídeos de execuções que circulam nos grupos de internet. Se não, adianto que eventualmente tu ainda vai dar de cara com algum. E caso já tenha, então vai entender o que quero dizer.

Um tiro na cabeça, na vida real, é bem diferente daquilo que se vê no cinema — acho que o filme que mais se aproximou da verossimilhança foi “Coringa”. Quando o projétil destrói o tronco encefálico, não há sequer uma mínima contração muscular e a pessoa despenca sobre o peso do próprio corpo, quase como se ela fosse “desligada”. O buraco de entrada quase sempre é pequeno em comparação com o ferimento de saída. Logo em seguida, o cérebro da pessoa “derrete”, de forma quase literal, e escorre pelo segundo ferimento. O resultado é que a poça formada ao redor do crânio no chão parece chimia de morango derramada.

É tudo bastante diferente do que se vê por aí nas películas de cinema, que geralmente mostra o ator sendo jogado para trás em uma cena eletrizante acompanhado de um trilha sonora condizente com o momento. Nesses casos reais, o único som possível de ser ouvido é do propelente da munição sendo acionado, das lágrimas e lamúrias por misericórdia e, quem sabe, de piadas de fundo. E por falar nisso, os verdugos são quase sempre jovens semianalfabetos, com um linguajar próprio de suas facções misturados com rosnados primitivos e agudos que zombam daqueles que acabaram de matar.

Não ponho a minha mão no fogo por ninguém, nem por aquele que acabou de morrer, seja nos vídeos que acabaram chegando ao meu celular eventualmente, seja até mesmo por aquele (ou aqueles) executado naquele dia de jogatina. Porém, eu sinto uma particular dificuldade encontrar uma brecha para piada nesses casos — algo que os carrascos não têm evidentemente.

Com certa frequência me questiono se isso é exemplo daquele ditado popular de que “pimenta nos olhos dos outros é refresco” ou simplesmente é o meu limite pessoal. Seja como for, não uso dessas palavras aqui como uma desculpa para falar que “não há graça alguma em um assassinato”. Talvez haja para as pessoas certas, mas eu não sou uma delas e não vou ser eu que vou repreender por isso, afinal meu humor também não é saudável como já demonstrei. Enfim, também devo dizer que nunca gostei de chimia de morango, nem mesmo antes do meu primeiro vídeo de execução.

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