O ritual viking mais macabro do que a águia de sangue

Diversas imagens nos ocorrem quando pensamos a respeito dos vikings: barcos, elmos com chifres, panteão de deuses, aventuras. Essa visão foi bastante suavizada nos últimos anos, principalmente com diversas produções da cultura popular. Apenas a série “Vikings” e o filme “O Homem do Norte” tentaram fazer algo mais próximo do que o povo escandinavo era de fato, mas ainda assim com falhas.

E por falar na série, algo chamou atenção do público: o ritual da águia de sangue. A prática é mencionada em algumas sagas e lendas como uma forma de execução na qual as costelas da vítima eram cortadas da coluna vertebral e dobradas para fora, formando “asas” sangrentas. Contudo, não há evidências históricas ou arqueológicas desse ritual na história nórdica.

Apesar disso, existe outra prática dos povos escandinavos que existiu de fato (ou pelo menos tem mais chance de ter existido), uma vez que foi documentado por um viajante árabe. E vale ressaltar que esse ritual é bem mais macabro, sombrio e violento do que a própria águia de sangue.

E estamos falando aqui dos ritos fúnebres, mais especialmente os que envolvem cremar o corpo em um barco. Provavelmente o leitor deve ter franzido o cenho e se perguntado como essa prática pode ser mais brutal do que a águia de sangue. E aqui vai a explicação.

De acordo com o historiador e arqueólogo Neil Price, nós temos uma ideia de como eram os rituais de cremação viking devido ao registro feito pelo viajante e cronista árabe Ahmad ibn Fadlan. Em 922, ele foi enviado de Bagdá para uma jornada às terras da corte do rei dos povos de Bolgar (uma cidade que ficava na atual Rússia, às margens do Rio Volga).

Não se tem certeza de quem foi Ibn Fadlan, mas se sabe que originalmente ele não era um cronista, mas sim um guarda-costas que, por um acaso, sabia ler e escrever e tinha uma excelente percepção para observar os costumes dos povos que encontrou durante a viagem com sua comitiva. É evidente que ele regressou à Bagdá e sobreviveu a jornada, mas não se tem maiores informações sobre sua vida.

Ibn Fadlan fez descrições da aparência, roupas e costumes dos povos que ele chamou de al-Rusiyyah (anglicizado como rus’), que hoje em dia se sabe que foram os mercadores escandinavos dedicados ao comércio fluvial na Eurásia – em outras palavras, os vikings do território oriental. Além disso, o viajante também fez uma extensa observação de como foi realizado do rito funerário após a morte do líder de um clã rus’, resultando enfim em sua cremação em um navio. Segundo o próprio relato do árabe, ele havia ouvido falar que a prática era “um espetáculo” e, por isso, ficou para testemunhar.

Os preparativos eram tão elaborados que duraram dez dias após a morte do homem. Foi erguida uma casa temporária para que o corpo repousasse, com direito a bebida, comida e instrumentos musicais, pois se sugere que os rus’ acreditavam que o cadáver estava “consciente” em alguma medida. E durante esses dez dias foram realizadas contínuas festividades, incluindo música, orgias e bebedeira pesada, ao ponto de que todos os presentes ficavam bêbados constantemente. Eram feitas roupas especiais para o chefe morto que tinham tantos adornos que era gasto um terço de sua fortuna. Outro terço era usado para fabricação de bebida alcóolica para o festival e somente o restante era resguardado para os herdeiros. Todas as etapas do ritual eram guiadas por uma mulher corpulenta que era chamada de “Anjo da Morte”.

No primeiro dos dez dias de preparação do corpo, os escravos do morto eram indagados sobre quem se voluntariaria para ser imolado junto do antigo dono. Ibn Fadlan conta que uma garota adolescente deu um passo à frente e logo em seguida foi vestida com roupas e joias caras. Assim, ao longo dos próximos dias, ela passaria o tempo inteiro bêbada e sendo estuprada pelos parentes do falecido.

Até que finalmente, no décimo dia, o navio seria arrastado para uma pira funerária e o corpo do falecido é colocado em uma barraca no convés – que a esta altura já estava em um avançado estado de decomposição. Vários de seus pertences são colocados ao seu redor e, neste momento, os rituais se intensificam. A escrava vai até a tenda de cada um dos homens presentes, onde é novamente estuprada. Enquanto isso acontecia, um cachorro foi cortado ao meio vivo e jogado no meio do navio. Cavalos e vacas são esquartejados também enquanto ainda respiravam neste momento, sendo que alguns equinos eram exercitados até a exaustão antes disso. Todos os pedaços dos animais são espalhados ao redor da embarcação.

No ato final do ritual, a escrava toma duas doses de uma bebida forte se deita ao lado do corpo putrefato do antigo dono. Então, ela é novamente estuprada por seis dos parentes do falecido (possivelmente os filhos dele). Após o ato, quatro dos homens a seguram por cada membro e os outros dois a estrangulam puxando as pontas de um véu enrolado em seu pescoço. Ao mesmo tempo, a mulher conhecida como o “Anjo da Morte” a esfaqueia entre as costelas diversas vezes. Por fim, a pira funerária era acesa e o navio, o morto e a escrava foram incinerados.

Ibn Fadlan comenta em seu relato que viu tudo aquilo com terror. Ele afirma também que foi indiretamente ameaçado por um dos rus’, que acusou os árabes de serem tolos por enterrar seus mortos ao invés de queimá-los. Além disso, essa narrativa pode ser um choque de realidade para quem pensa que o povo escandinavo era admirável em alguma medida.

É válido ressaltar também que o povo escandinavo era composto de diversas tribos, portanto as práticas funerárias costumavam variar. Não à toa que é possível encontrar, inclusive, cemitérios nórdicos muito semelhantes aos que se encontra atualmente. Os rituais de cremação, como descritos por Ibn Fadlan, eram mais comuns nas áreas próximas da Suécia e da Finlândia.

O senhor dos enforcados

Outro ritual viking bastante macabro foi narrado pelo medievalista alemão Adão de Bremen, que viveu durante o século 11. Essa prática foi observada na cidade de Uppsala, na atual Suécia, e consistia em um enforcamento generalizado em um bosque sagrado. O autor descreve que em 72 árvores diferentes estavam pendurados tanto animais de grande porte (como cavalos) até mesmo pessoas. Ele observou que todos eram machos e foram deixados para apodrecer no local.

É válido reforçar que a história viking não foi escrita pelos próprios, mas sim por outros povos – em especial, os que foram invadidos e atacados pelos saqueadores. Portanto, se pode imagina a princípio que o enforcamento de Uppsala pode ser um exagero do cronista medieval. No entanto, tapeçarias e pedras pictóricas encontradas em outras partes da antiga Escandinávia (e estas sim foram feitas pelos vikings) retratam cenas semelhantes a descrita por Adão de Bremen. Dessa forma, existem fortes indícios de que a descrição esteja correta.

Pode não ser uma mera coincidência que Odin, o deus supremo do panteão nórdico seja também conhecido como “o senhor dos enforcados”. Em versões da mitologia, é descrito que ele era capaz de acordar os mortos através do enforcamento e interroga-los a respeito do futuro. Além disso, alguns dos nomes associados a divindade o relacionam diretamente com o enforcamento. Dois deles se destacam: “Hangi” e “Hangatyr”. Uma curiosidade disso tudo é que em inglês o verbo “enforcar” é “hang”, o que pode não ser uma mera coincidência, visto que o inglês derivou do idioma do povo escandinavo. Aliás, os próprios dias da semana no idioma fazem referências às divindades, como o “dia de Wotan” e “dia de Thor”.

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