Um livro sobre índios, caçadas e espíritos vingativos

Em um primeiro momento, a premissa do livro “Temporada de Caça”, do autor norte-americano Stephen Graham Jones, me chamou bastante a atenção. “Uma leitura de terror no meio do verão”, pensei comigo mesmo imaginando que poderia ser uma boa experiência, tal como tive com diversos outros autores nesta mesma época do ano durante o fim da adolescência e começo da faculdade. E talvez, se fosse naquela época, eu provavelmente teria visto esse livro com olhos bem diferentes dos meus de agora.

Eis a sinopse oficial da obra: “No último dia da tradicional temporada de caça, quatro homens indígenas do território sagrado da nação Blackfeet, no estado de Montana, tomaram uma decisão que custaria muito caro. Lewis, Ricky, Gabe e Cass sabiam que caçar na reserva era proibido e um desrespeito, mas, movidos pela adrenalina, fizeram mesmo assim. Agora, dez anos depois do evento conhecido como Clássica Ação de Graças, Lewis começa a ser assombrado por um espírito vingativo — uma criatura com cabeça de cervo.

A edição brasileira, publicada pela Darkside Books, é aberta com três páginas de justificativas do porquê o tradutor optou por traduzir “índios” e “tribos”, uma vez que muitos grupos mimizentos de hoje em dia acham esses termos ofensivos para se referir aos povos indígenas. Isso já me fez revirar os olhos, mas segui adiante (afinal, não poderia jogar 60 reais no lixo por causa de algo assim). Mas o curioso é que em determinada passagem do livro, é comentado a respeito dessa questão, quando um personagem adolescente da tribo dos Blackfeet se sente ofendido quando membros mais velhos se referem a si mesmos como “índios”. Esses mesmos personagens mais velhos até mesmo tiram sarro com a cara do jovem após essa constatação, o que serviu para tirar um sorrisinho do meu rosto. O mais problemático do livro, no meu ponto de vista, é que ele é vendido como uma obra escrita por um autor indígena e que aborda questões sociais envolvendo os povos originários dos Estados Unidos. Porém, ao longo do próprio livro, diversas situações expostas acabam por reforçar alguns estereótipos que se tem dos indígenas, o que é irônico. Assim, o marketing que é feito é minimamente desonesto ou então os editores não leram o livro que publicaram.

A narrativa é uma montanha-russa de altos e baixos com mais baixos do que altos. A primeira coisa que incomodou é a escrita pouco lapidada e extremamente “livre”, como se o autor tivesse apenas deixado a imaginação correr solta sem qualquer cuidado com polimento. Em muitos momentos, me peguei pensando que o escritor deve ter terminado o livro em poucos dias, como se tivesse correndo contra o tempo apenas para que pudesse concluí-lo logo. Como resultado, o produto final é uma sequência caótica de frases ou muito longas, ou muito curtas, ou então a introdução de um fluxo de consciência que não condiz com o que a história pede. É quase como se o livro transitasse em uma linha tênue entre uma narrativa literária e um roteiro de cinema, mas que no final das contas não atinge nenhum dos dois objetivos. Isso acontece porque, por mais contraditório que pareça, a escrita carece de substância ao ponto de deixa-la interessante como obra literária, mas é inchada demais para que seja acompanhada como um roteiro que posteriormente será adaptado.

O enredo, por sua vez, é curioso e até mesmo envolvente em um primeiro momento. Porém, ao acabar o livro, é provável que o leitor tenha mais dúvidas do que certezas a respeito do que acabou de ler. Aliás, é um pouco intrigante como o autor de “Temporada de Caça” tentou maquiar algumas falhas da própria narrativa com uma tática de dispersão, mas que no final se revelou um mero imbróglio. Exemplo: antes do final da primeira parte do livro, é muito provável que o leitor já desconfie quem é a Mulher com Cabeça de Cervo, mas aí então nos é jogado uma cena chocante de morte dessa suspeita o que vai levar o leitor a pensar “nossa, mas esse autor é imprevisível, vamos ver aonde isso vai dar”. Aliado a isso, poucas páginas depois ele toma a decisão inusitada de matar o protagonista e mudar a perspectiva da história para um segundo grupo de personagens. No entanto, como havia dito, isso tudo é apenas um embuste, pois as suspeitas originais do leitor vão se mostrar corretas nas últimas páginas do livro e precisamos apenas aceitar o fator do “sobrenatural” como justificativa para tudo que aconteceu antes.

Mas apesar disso tudo, o suspense do livro é competente para fazer o leitor ir até o final para saber o que acontece. O capítulo de abertura é talvez um dos pontos mais altos, pois ele realmente convence a ir atrás de conhecer mais a respeito daquela história. Outro mérito é o desenvolvimento dos personagens humanos da obra, com suas inúmeras falhas, preconceitos e tentativas de levar a vida de forma digna. É possível sentir o peso que os personagens possuem dentro de seus problemas com relação a sua posição na sociedade sendo indígenas. Também é destacado os preconceitos que os próprios membros de uma tribo têm com quem vai embora das terras e se casa com alguém de outra etnia. É possível também ver as rivalidades que existem entre membros de diferentes tribos, como os Blackfeet, os Crow, dentre outros – algo que pode ser muito distante dos leitores brasileiros. A grande vilã da história, que é essa criatura que se assemelha a uma mulher com cabeça de cervo, é um dos pontos mais interessantes da trama, mas muito mais pela estética e pela forma como ela age para se vingar dos transgressores do que por suas motivações.

Existe um ditado popular que diz: “A prova do pudim está em comê-lo”. Neste caso, a leitura de um livro é indispensável para saber o que há dentro dele. Mas às vezes, a gente segue em frente (comendo ou lendo) apenas para não desperdiçar nosso suado dinheirinho. E foi mais ou menos essa a minha experiência com “Temporada de Caça”, pois mesmo reconhecendo os méritos da obra, eles ficam diluídos dentro de uma narrativa caótica e insossa e de um marketing literário bem feito.

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