Um livro reportagem escrito por um advogado

Caso pergunte a qualquer jornalista qual é o mais prestígio da profissão, uma das respostas possíveis é: “escrever um livro reportagem”. Quem é mais ligado ao audiovisual poderia responder algo como “fazer um documentário”. No final das contas dá mais ou menos no mesmo, mudando apenas o formato. O que quero dizer é que o ponto alto da profissão é produzir uma grande reportagem sobre um tema impactante.

O fato é que não são todos os jornalistas que conseguem fazer isso, pois existem diversos fatores que estão além de sua capacidade de apuração e desenvolvimento – apesar de que muitos contam apenas com um diploma e nada mais. Agora, o que dizer quando um advogado consegue escrever um livro reportagem tão bom que rivaliza com grandes nomes do jornalismo, como Gay Talese e Truman Capote? Apesar de que em sua ficha catalográfica não seja classificado como “jornalismo literário”, o livro “Vítima: O Outro Lado do Assassinato”, do norte-americano Gary Kinder é sim um grande exemplo de grande reportagem.

Seu trabalho de apuração e sua sensibilidade inquietante de repórter me deixou surpreso ao descobrir sua formação na área jurídica. Quer dizer, honestamente, isso não chega a ser uma surpresa, pois muitos dos grandes jornalistas não eram graduados em Comunicação, mas sim em Direito. Mas não deixa de ser um feito notável. E antes de continuar com a análise do livro em si, vamos a uma rápida explicação a respeito do crime.

Ao longo das páginas, o leitor vai se deparar com a história do Massacre da Hi-Fi Shop, que aconteceu em 22 de abril de 1974, em Utah, nos Estados Unidos. Quatro homens armados assaltaram uma loja de eletrônicos e para isso amarraram dois funcionários no porão do local enquanto carregavam as vans com os produtos. Em dado momento, um garoto chamado Cortney Naisbitt apareceu para falar com um dos funcionários que era seu amigo e acabou sendo feito de refém também. Pouco depois, apareceu também o pai desse mesmo funcionário e por fim a mãe de Cortney. 

Com os cinco reféns confinados, os criminosos trouxeram um frasco que era supostamente “vodca com pílulas para dormir, para que eles apagassem durante a fuga”. Contudo, o verdadeiro conteúdo do recipiente era Drano, um produto utilizado para desentupir ralos – semelhante a soda cáustica. A ingestão do produto causou diversos danos na boca, lábios, pele e esôfago das vítimas. Orren, o pai do funcionário, foi o último a receber a substância e conseguiu cuspir boa parte do Drano e imitou os gritos e convulsões, para que os criminosos pensassem que ele também estava sendo intoxicado. Um dos assassinos se irritou com a demora das mortes e começou a atirar na cabeça dos reféns. Quando perceberam que Orren ainda estava vivo, tentaram estrangulá-lo com um arame e, como não conseguiram, inseriram uma caneta pelo ouvido dele. Depois disso, os assassinos fugiram na van.

As vítimas foram encontradas quase três horas depois. Orren, Cortney e Carol, sua mãe, ainda estavam vivos naquele momento, porém a mulher morreu após chegar ao hospital. Horas após o crime, dois adolescentes acionaram a polícia após encontrar pertences das vítimas em um container de lixo próximos de uma base aérea. Quando a polícia chegou ao local, três homens apresentaram um comportamento inquieto e chamaram a atenção. Eles eram justamente os criminosos: Dale Selby Pierre, William Andrews e Keith Leon Roberts, que acabaram sendo presos. Foi feita uma busca nos aposentos deles até que foi encontrada uma nota do aluguel de um armazém de depósito, que era justamente o local onde estavam escondidos os itens roubados da loja – confirmando assim que eles eram os culpados.

Como o título dá a entender, o foco do livro está justamente nas vítimas de um crime hediondo. Ou melhor, na maior vítima de todas, que foi o Cortney Naisbitt, que sobreviveu apesar de levar um tiro na cabeça e ser forçado a beber um desentupidor de ralos. Dessa forma, algo que diferencia esse livro dos demais envolvendo crimes verdadeiros, é que os autores do massacre são colocados em segundo plano. Em dado momento, o leitor mais acostumado com esse tipo de enfoque nos criminosos pode acabar ficando frustrado por não ter maiores informações a respeito deles. No entanto, a proposta da obra é justamente dar maior destaque para as vítimas e os familiares. Portanto, aqui devo ser chato e dizer que o leitor deve primeiro entender a proposta da obra e tentar abrir os horizontes para uma perspectiva que, infelizmente, é pouco abordada.

A construção do livro é interessante, pois o autor alterna a narrativa entre descrições de cenas e locais, diálogos entre os personagens da história e transcrições diretas de declarações dos entrevistados – estas que vão estar destacadas em itálico. Além disso, Kinder também teve acesso às anotações dos médicos, o que nos permite ter uma noção bastante clara do estado de saúde de Cortney ao longo dos meses que passou em recuperação.

E por falar em Cortney, que pode ser considerado o “protagonista” do livro, sua história antes e depois do incidente é contada de forma magistral. A narrativa de Kinder em retratar os acontecimentos é algo que só os melhores repórteres conseguem fazer. E mesmo que com uma rápida pesquisa na internet seja possível descobrir o desfecho da história do garoto, ainda assim a construção é bastante convidativa para entendermos como tudo aconteceu. O drama do garoto, que na época tinha apenas 16 anos, é angustiante de se acompanhar e nos faz ter raiva do que os criminosos cometeram ao ponto de deixarmos de lado nossa curiosidade mórbida em querer saber mais a respeito deles. Por isso, é possível considerar essa obra como uma das mais importantes até mesmo para conscientização do público a respeito do teor sério dos crimes verdadeiros. Isto é: por mais que seja divertido ler sobre serial killers, não dá para esquecer que eles mataram pessoas que tinham vidas e histórias pessoais que mereciam ser contadas tanto quanto a dos algozes.

Vale destacar que até mesmo termos técnicos da área médica são simplificados ao ponto de que um leigo consiga entender o drama de Cortney em sua luta pela vida. Ao contrário do que se imagina a princípio, o tiro em sua cabeça não foi o maior dos problemas em sua recuperação, mas sim o fato de ter sido forçado a engolir uma substância altamente corrosiva – o que levou a diversas complicações que quase ceifaram sua vida. Como resultado, o garoto precisou lidar com sequelas físicas e psicológicas pelo resto de sua vida.

Um fato curioso é que, diferente de outros livros reportagem, o autor não escorrega no erro clássico de colocar todas as informações coletadas. Digo isso porque um dos maiores dramas de um jornalista ao escrever uma matéria é justamente o fato de ter que deixar elementos de fora, mas aí eles se dão ao luxo de “pesar a mão” na hora de compor um livro e colocam literalmente toda e qualquer informação obtida. Contudo, apesar de rico em detalhes e com uma narrativa envolvente, Kinder conta apenas o essencial para que o leitor entenda a história. A sensibilidade de repórter e perícia do autor na hora de transmitir a história, equilibrando bem todos esses elementos, torna a leitura envolvente e facilmente poderia rivalizar com grandes obras do jornalismo literário, como “A Sangue Frio” e “Honra Teu Pai” – apesar de, lamentavelmente, não ser catalogado como um livro reportagem.

Um livro de fácil leitura, mas ao mesmo tempo denso e necessário, “Vítima: O Outro Lado do Assassinato” é um título que se tornou obrigatório para a formação de agentes do FBI. Contudo, a obra não deve ficar restrito apenas entre as autoridades, pois o grande público também quase sempre esquece de lembrar das pessoas que sofreram na mão de monstros. Isso é algo que o próprio pai de Cortney aponta nas páginas finais, quando destaca que os assassinos de sua mulher custaram mais de US$ 200 mil ao longo dos anos que foram presos antes da execução, mas que seu próprio filho viveria com sequelas o resto da vida e não tinha nenhum apoio.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *