Histórias japonesas que pescam a essência de seu povo

Sendo um dos países mais fascinantes para os brasileiros, o Japão tem uma cultura rica e milenar. Recentemente comentei aqui que o lugar é muito admirado pela sua honra, disciplina e desenvolvimento, sedo estas coisas não são muito comuns na América Latina. Porém, é perceptível que toda a visão que temos do Japão é filtrada através de uma ótica da grande mídia. Em outras palavras, temos essa visão utópica do país através dos animes e vídeos que circulam pela internet – que estão cheias de clichês e lugares-comuns.

Dessa forma, pode ser um pouco surpreendente quando se pega uma obra literária que pesca a essência nua e crua do povo japonês. Evidentemente que seria reducionista de minha parte dizer que um único livro tem esse poder – nem os escritores mais geniais têm ou tiveram tal capacidade. Porém, o título “Clássicos Japoneses Sobrenaturais”, de Richard Gordon Smith (1858-1918) consegue capturar algumas carpas capazes de revelar isso.

O livro conta com exatos 57 contos curtos que foram escritos a partir de relatos colhidos pelo próprio autor. E por falar nele, o leitor deve ter se dado conta que seu nome está longe de ser japonês, pois realmente não era esta sua nacionalidade. Smith era um naturalista britânico que, a pedido do British Museum, foi ao Japão em 1898 para coletar amostras de fauna e flora local. Porém, sua curiosidade com relação ao povo e costumes locais acabaram revelando seu lado antropólogo. Ele tinha o hábito de manter diários e grande parte das histórias foram obtidas com a ajuda de um intérprete chamado Yuki Egawa. A primeira edição do livro foi publicada em 1908, na Inglaterra, e agora dispomos da tradução de Alexandre Boide publicada em 2023 pela Darkside Books.

Em linhas gerais, o trabalho de Smith é genuíno e mostra um lado tanto antropológico quanto poético e jornalístico. Dizendo de outra forma, sua principal missão era traduzir para o público ocidental, da forma mais transparente possível, as histórias populares que eram contadas pela tradição oral do povo japonês. Portanto, acredito que o “sobrenaturais” no título da obra foi uma decisão editorial visando a venda, uma vez que grande parte das histórias narradas não tem nada de sobrenatural e muito menos de terror como se presume (aliás, o título original é “Ancient Tales and Folklore of Japan”).

O grande mérito de Smith com a obra é sua sensibilidade em conseguir selecionar e transcrever as histórias colhidas da forma mais honesta possível. Contudo, em determinados momentos, ele demonstra claramente sua discordância com as lições morais transmitidas – pessoalmente, eu tendo a concordar com suas ressalvas. Assim, aos poucos, o leitor vai tendo uma noção clara tanto das virtudes quanto das falhas dos japoneses: vingança, paixão insana, amor genuíno, honra, disciplina, nacionalismo, crueldade, superstição e fideísmo são alguns dos temas abordados. Vale ressaltar que durante muito tempo, na história humana, as lições eram tiradas justamente através de enredos tais como os contidos no livro, portanto o leitor terá em mãos um compilado da sabedoria e entretenimento popular do Japão.

Creio que a obra, agora disponível para o público brasileiro, seja uma boa opção de leitura para “curar” certos vícios de visão que se tem com relação aos japoneses. “Clássicos Japoneses Sobrenaturais” demonstra, através da própria cultura popular do país, o quanto este povo é humano, tanto no melhor quanto no pior sentido. Além disso, os próprios comentários do autor questionando a validade das lições morais servem para chamar a atenção dos incautos que possam achar tudo ali contido como sendo belo e moral – apesar de achar que um leitor médio conseguiria chegar nas mesmas questões sem a ajuda de Smith.

Por fim, gostaria de deixar uma outra sugestão de leitura (desta vez de um autor japonês) que também transparece com sensibilidade o espírito de seu próprio povo: Yasunari Kawabata. Este autor escreveu diversas títulos, mas sem dúvida a que mais impacta é “Mil Tsurus”, sendo um romance breve, com diversas facetas e de uma maestria narrativa pouco encontrada na literatura mundial. Na obra, é possível encontrar um protagonista que representa a angústia japonesa entre viver os costumes do passado e a nova realidade que o presente apresenta. Além disso, as coadjuvantes servem bem para ilustrar e contrapor esses dissabores. Isso é tão bem retratado que, até determinado ponto do livro, é impossível saber se ele se passa em um período feudal ou pós-guerra.

Caso o leitor decida ler, em um mesmo período de tempo, tanto Yasunari Kawabata quanto “Clássicos Japoneses Sobrenaturais”, talvez sua ótica com relação certos estereótipos que se tem do Japão mude completamente. Agora, é evidente que alguém sem muito apuro para tais questões possa ver tais obras como uma completa perda de tempo. Quanto a isso, não tenho qualquer observação a fazer a não ser recomendar continuar apenas com os animes e mangás. Pessoalmente, sigo consumindo estes também.

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