E se todos os livros do mundo fossem queimados?

Há anos ouço falar sobre “Fahrenheit 451”. A primeira vez foi através de uma entrevista de Stephen King para um programa de conversa – pode ter sido antes também, mas não tenho certeza. Contudo, apenas peguei para ler tal obra muito tempo depois.

Uma característica curiosa com relação aos livros de distopias e a minha vida de leitor é que sempre que peguei algum para ler nunca sabia exatamente onde estava me metendo. Eventualmente tive experiências agradáveis, como em “A Revolta de Atlas”(meu livro favorito de todos até o momento) e “1984”, mas isso não se repetiu da mesma forma em “Fahrenheit 451”. Para começar, ao tirar o plástico de proteção, descobri que meu exemplar estava com um defeito e algumas páginas foram rasgadas quase ao meio por causa disso – o que achei meio irônico, pois a história se trata de “destruir” livros.

Mas deixando essa pequena infelicidade de lado, vamos tocar em outros miúdos da obra.

O elemento que mais me agradou neste livro foi a estética retrô-futurista que a obra emprega, porém chamo atenção que, aqui, meu critério é puramente subjetivo, pois sou um apreciador desse estilo de universo desde sempre. Sempre achei interessante a forma como as pessoas de décadas passadas imaginavam o futuro, pois de uma forma irônica, qualquer obra de ficção que flerta com essa temática acaba revelando muito mais sobre o presente do que do futuro.

No entanto, apesar disso, confesso que achei quase todos os outros aspectos da obra passíveis de ressalvas, mas não injustificáveis. Se levar em conta o fato de que o autor teve problemas para escrever esse livro, como por exemplo ter que usar máquinas de escrever alugadas por meia hora de uso, esses próximos problemas que vou expor parecem inevitáveis. Contudo, não sei até que ponto isso é cabível de vista grossa, pois diversos outros autores passaram por perrengues até piores, mas deixaram obras mais sólidas.

Ray Bradbury utiliza uma narrativa que em muitos momentos é fluída e em outros acaba deixando o leitor perdido. Para começar, a troca de cenários é feita de forma abrupta e sem muitos escrúpulos. Várias vezes os pensamentos do protagonista invadem o espaço do narrador ao ponto de confundir o que cada coisa é.

Além disso, em alguns momentos, a história apresenta elementos que não parecem ter qualquer função além de pura conveniência para que a trama possa seguir pelo rumo que o autor quer. Só para citar um exemplo exemplo, em dado momento o protagonista revela ser um colecionador de livros há mais tempo do que imaginamos. Foi um “roubo” ao melhor estilo Agatha Christie.

Apesar disso tudo, o que mais me incomodou em “Fahrenheit 451” foi a construção de mundo problemática. Em uma história de distopia, a concepção do universo é a espinha dorsal que vai conduzir toda a narrativa. Alguns autores, como George Orwell, em poucas páginas fazem o leitor sentir o clima opressor e sinistro que a obra possui. Mas não é o caso de Bradbury, pois tirando o fato dos bombeiros serem profissionais que queimam livros e todos viverem em uma “sociedade do espetáculo”, praticamente nada mais lembra e convence o leitor que aquela é uma história distópica. Nem quando o protagonista começa a se emaranhar na trama de salvar livros ou quando acaba sendo caçado pelas suas ações: praticamente nada daquilo soa com o clima que a obra quer passar. Isso ocorre como um sintoma do problema que apontei com relação a prosa arrítmica que o livro possui.

E por falar no protagonista, Guy Montag em muitos momentos me pareceu uma espécie de Winston Smith (“Eu Sou a Lenda”) sem sal, ao ponto dos demais personagens serem mais cativantes do que ele próprio. Sua esposa Mildred é irritante, mas tem ações bem condizentes para aquele universo. Clarisse, a menina que Montag conhece logo nas primeiras páginas, é uma das personagens com grande potencial, porém que acaba sendo desperdiçada ao ponto que sua perda não é “sentida”, mas sim frustrada. O professor Faber poderia ter sido mais explorado também, mas sua participação foi melhor aproveitada na trama, por mais que não tivesse me convencido com o fato d’ele ser uma espécie de inventor amador.

No final das contas, o que acaba reforçando a importância e a durabilidade de “Farenheit 451” ao longo das décadas é o fato desse livro expor as angústias de uma época. Com a disseminação da televisão no mundo, era justo que as pessoas pensassem que livros ficariam obsoletos. Além disso, a ameaça de uma guerra nuclear entre duas potências mundiais era muito presente no imaginário popular, o que acarretava em hipóteses sombrias para o futuro. E também, é claro, quanto ao fato de que Bradbury foi quase um vidente quando escreveu o trecho que diz que “todas as minorias querem ver seus próprios umbigos limpos” – interprete como quiser. Acredito que o teórico da comunicação Henry Jenkins não iria apreciar este livro de forma alguma.

Porém, mesmo com os problemas, é um livro que vale a pena ser lido. Pessoalmente, me peguei o lendo no auge da pandemia, quando estava desempregado e com o medo de morrer. Portanto, foi uma experiência boa tê-lo lido naquele momento que me fez esquecer de tudo. Outro ponto que achei curioso é o fato de que esse livro foi relativamente profético, uma vez que o conceito de “a sociedade do espetáculo” só viria mais de uma década depois no livro de Guy Debord. Caso “Fahrenheit 451” tivesse sido escrito na década de 1970, eu pensaria que o nome do protagonista era uma referência ao francês, mas não foi esse o caso.

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