O fim do YouTube e o poder da imprensa

“Churrascamento”, “foi jogar no Vasco”, “faturamento”, “dançarino do tinhoso”…

São tantos eufemismos para certas palavras sensíveis que fica até difícil listar todas. E mais são criadas todos os dias.

Certamente você já deve ter ouvido alguma em algum vídeo do YouTube ou no TikTok e Instagram. Isso acontece principalmente com criadores que abordam temas mais sombrios ou considerados “politicamente incorretos”, mas não somente estes. Com o tempo até mesmo palavrões passaram a ser evitados para que os algoritmos não penalizem o alcance do conteúdo.

Caso alguém voltasse para algum momento entre os anos de 2009 e 2016 e contasse como seria o conteúdo consumido nos dias de hoje ninguém acreditaria. Tais anos, aliás, foram considerados a era de ouro dos criadores, principalmente no YouTube. Inclusive, por sentimento de nostalgia ou não, se alguém decidir rever os vídeos desta época, é possível notar o quanto as coisas eram diferentes. Era como se todos tivessem mais liberdade para fazer o que bem entendessem, sem se preocupar com eufemismos, censura de palavras com medo de o algoritmo penalizar seu alcance ou derrubar seu vídeo.

Mas afinal: como chegamos neste ponto? O que aconteceu para que os criadores precisassem pisar em ovos o tempo inteiro? A resposta para esta pergunta está no ano 2017, que foi o divisor de águas para tudo que conhecemos atualmente. E vale ressaltar que, apesar de tudo ter começado no YouTube, as demais plataformas seguiram o exemplo.

Podemos considerar aquele como sendo o ano mais sombrio da história do YouTube, sendo que a plataforma quase faliu. E tudo começou com dois criadores de conteúdo: PewDiePie e Logan Paul.

Neste momento, vamos focar no primeiro, pois ele foi o ponto de virada de toda esta história.

PewDiePie, nome artístico de Felix Arvid Ulf Kjellberg, é um youtuber sueco que durante anos foi considerado o maior do mundo. No início, seus vídeos eram focados em gameplays de jogos de terror, mas posteriormente seu conteúdo se diversificou em outros do entretenimento, como vlogs e paródias. Desde sempre, ele esteve envolvido em algumas polêmicas devido opiniões e atitudes (principalmente devido seu humor “distorcido” ao tratar de assuntos como religião e modas de comportamento), mas nada grave.

Isto é, até o bendito ano de 2017.

No início daquele ano, ele fez um vídeo acessando um site chamado Fiverr, na qual as pessoas “fariam qualquer coisa por cinco dólares”. Com esta proposta, PewDiePie resolveu, em vídeo, ver o quão longe alguém seria capaz de ir por tão pouco dinheiro. Assim, ele contratou dois rapazes indianos para gravar vídeos exibindo cartazes com frases antissemitas, como “Morte a Todos os Judeus”. No vídeo, quando ele se dá conta que os seus “contratados” de fato fizeram o que havia sido pedido (tudo por meros cinco dólares), PewDiePie se mostrou chocado e pediu desculpas pelo que havia acontecido. Porém, esse conteúdo não era algo ao vivo que poderia, por acidente, entrar no ar, portanto o youtuber tinha um mínimo de autonomia e capacidade de ou não publicar o material ou então editar tal parte. No entanto, ele não fez nada disso e publicou o vídeo em sua íntegra.

Essa situação chamou a atenção de jornalistas – que, diga-se de passagem, nunca conseguiram se adaptar de forma totalmente eficiente ao digital. Assim, uma equipe de repórteres do The Wall Street Journal resolveu fazer um levantamento sobre quantas vezes PewDiePie fez piadas ou conteúdos ofensivos devido a conotação antissemita. A publicação acabou colocando a imagem do youtuber em evidência para um público ainda maior.

Aliado a isso, o jornal também resolveu fazer uma investigação a respeito dos anúncios em vídeos menores. E do ponto de vista jornalístico, essa ideia é bastante óbvia: ora, se o maior youtuber do mundo tinha conteúdo com referências nazistas e mesmo assim continuava sendo monetizado, o que seria possível de achar nas profundezas do YouTube?

E como se pode imaginar, eles encontraram uma coisa extremamente grave.

Em abril de 2017, o The Wall Street Journal publicou uma matéria investigativa na qual eles mostravam que diversas marcas que anunciavam no YouTube (aqueles cinco segundos chatos que todo mundo pula sem nem ver o que é) estavam tendo suas peças publicitárias veiculadas em vídeos sombrios. Exemplo disso eram conteúdos de propaganda de grupos terroristas, discurso de ódio contra grupos étnicos, dentre outros. E mais: com o algoritmo da época, uma fração do dinheiro investido nestes anúncios ia diretamente para o canal que havia publicado aquele vídeo. Em outras palavras, seria como se a Samsung e a Coca-Cola estivessem “patrocinando” indiretamente esse tipo de coisa.

Como resultado, com essa matéria publicada, os anunciantes saíram em debandada do YouTube, o que fez as receitas da empresa despencarem de forma abrupta. Assim, os criadores de conteúdo também viram suas receitas diminuírem quase que da noite para o dia – valores que giraram na casa -90% a -95%.

E como é de se imaginar, essa situação foi desesperadora para todos, tanto para os executivos da plataforma quanto para os criadores de conteúdo. E também como é de se esperar, pessoas desesperadas costumam meter os pés pelas mãos em suas decisões e atitudes – o que, olhando em retrospecto, é compreensível. Assim, o YouTube decidiu que iria passar a priorizar vídeos que fossem o mais “Family Friendly” possível: sem palavrões, sem escatologia e sem nada de ofensivo…

Na teoria, essa ideia até que é “compreensível”, mas na prática isso dá uma margem para critérios arbitrários bastante questionáveis. Um “palavrão” é fácil de identificar, mas o que seria escatológico e ofensivo? O dicionário tem uma definição, mas o algoritmo pode possuir outro totalmente diferente. E esse critério, como bem sabemos, é sempre pensando no patrocinador. Isto é curioso quando se coloca em retrospectiva, pois o YouTube, que sempre se vendeu como uma alternativa a mídia tradicional, acabou adquirindo a mesma lógica dela – e tudo isso por causa de uma mídia tradicional que, durante muito tempo, as pessoas estavam pensando que estava moribunda.

E que isso fique de lição para nunca subestimar o poder que a imprensa possui, pois, uma única pergunta feita por um grupo de jornalistas levou a uma matéria que modificou toda a forma como o conteúdo é produzido hoje em dia na internet. Digo aqui “internet” como um todo porque, como o leitor pode ter imaginado, não foi só o YouTube que “refinou” seu algoritmo para pegar canais em desacordo com sua nova política: Instagram e TikTok também seguiram a mesma lógica e, hoje em dia, o conteúdo é feito visando ser o menos ofensivo possível.

Por isso que, em canais de conteúdos mais sombrios, atualmente vemos uma situação na qual diversos eufemismos são usados para se referir a determinados termos – o que pode acabar deixando os vídeos com um teor de humor macabro e com diversas piadas com o fato de “o YouTube não me deixa falar a palavra certa”.

Mas não é apenas este tipo de vídeo que vem sofrendo desde então. Até mesmo os conteúdos sem esse tipo de direcionamento acabaram ficando engessados, como se os autores estivessem pisando em ovos. Pode ter certeza que dailyvlog seria um tipo de conteúdo que nunca daria certo nos dias de hoje – apesar deste tipo de vídeo ter saturado muito antes do fim da era de ouro do YouTube, mas enfim.

Tudo bem. Falamos aqui sobre o PewDiePie, o The Wall Street Journal e como tudo isso afetou o conteúdo até agora… Mas onde entra o Logan Paul, que foi citado lá em cima? Basicamente, o caso dele jogou sal na ferida que foi aberta em 2017.

No final daquele mesmo ano, quase no início de 2018, o youtuber norte-americano publicou um vídeo na qual mostrava ele e três amigos passeando pela floresta japonesa Aokigahara. O local, que fica abaixo do Monte Fuji, é conhecido mundialmente como “a floresta dos suicidas”, pois todos os anos diversas pessoas decidem encerrar com suas próprias vidas no lugar. Atualmente, o governo do Japão não divulga mais quantos corpos são recolhidos todos os anos, mas se especula que mais de 100 pessoas morrem pelas próprias mãos anualmente – sendo o segundo local mais procurado no mundo com esse objetivo.

E como é de se imaginar de uma pessoa com o espírito burlesco, Logan Paul, que na época tinha 15 milhões de inscritos, achou que seria uma excelente ideia passear pelo local filmando tudo. Até que ele e seu grupo se depararam com o corpo de um homem que havia se enforcado em uma árvore. Eles filmaram tudo e subiram o vídeo no dia 31 de dezembro daquele mesmo ano, sendo que o conteúdo chegou a permanecer durante uma madrugada inteira. A repercussão foi extremamente negativa e Logan Paul recebeu críticas pesadas e chegou a ficar afastado da internet por um longo tempo após isso – mas não antes de emitir um pedido de desculpas.

O YouTube, vendo a situação causada por Logan Paul, e já temendo uma segunda debandada dos anunciantes – que timidamente estavam voltando para a plataforma desde a matéria do The Wall Street Journal –, decidiram modificar novamente suas políticas e seu algoritmo. Para evitar que novos criadores “muito ousados” conseguissem crescer na plataforma, foi decidido que a monetização só seria concedida para canais com mais de 1 mil inscritos e que mantivessem uma média anual de mais de 4 mil horas assistidas. Assim foi colocado o último prego no caixão de quem esperava, algum dia, conseguir crescer e produzir conteúdo para a plataforma. Isso acontece pois essa regra só poderia ser seguida por pessoas e empresas com aporte o suficiente para investir tempo em um conteúdo mais elaborado, perdendo totalmente a espontaneidade que os vídeos de outrora tinham. 

Podemos tirar várias lições com esta história.

A primeira delas é que, não importa o quão revolucionário ou bom seja uma ideia, pois a partir do momento que se prioriza o anúncio, o que se produzia vai, inevitavelmente, ter uma redução na sua qualidade – com a mídia tradicional foi assim e com a internet já está assim. A segunda lição é que as pessoas não podem nunca subestimar o poder que um veículo de comunicação tem – “é melhor despertar a ira de um guerreiro do que a ira de um poeta” –, pois jornalistas têm poder de fazer coisas grandiosas para o bem e para o mal. Por fim, também é importante notar que, se não fosse a imprudência de duas pessoas, talvez as coisas atualmente fossem bem diferentes na internet.

Tudo tem um ponto de virada. No conteúdo da internet, este foi um deles.

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