“1984” tem um protagonista que não aparece nas páginas

A magnum opus de George Orwell é daquele tipo de livro que todo mundo comenta e já ouviu falar, mas poucos leram de fato – assim como os trabalhos mais importantes de todos autores da literatura universal. Dessa forma, é triste ver como o subproduto cultural mais conhecido envolvendo a obra é o reality show anual que movimenta o Brasil. Aliás, uma vez vi um meme que afirmava que “os fãs de BBB sequer ouviram falar de George Orwell” e alguém questionou em qual edição ele tinha participado. É hilário.

Outro ponto importante de se observar é que “1984” é muito utilizado, de forma banal, em debates políticos, sendo que cada lado do espectro puxa o tema central para sua própria brasa – isto é, os esquerdistas afirmando ser uma crítica a direita e os direitistas afirmando ser uma crítica a esquerda. Assim, não vou me ater a esses detalhes que muitas vezes não possuem o menor sentido e não contribuem em nada. Estou apenas expondo uma opinião mais crítica e técnica quanto ao livro.

Logo no primeiro capítulo somos apresentados aquele universo distópico e ao protagonista, Winston Smith, que trabalha editando jornais antigos para favorecer o regime vigente. Logo neste início já acontecem algumas coisas incômodas. A principal delas é o fato de o autor sentir a necessidade de explicar certos aspectos do personagem e da história que seriam muito melhores se não ficassem explícitos.

Exemplo disso é na cena que ocorrem os “Dois Minutos de Ódio” (uma técnica do governo para controlar a população) e Winston vê uma mulher bonita com uma “faixa antissexo” enrolada na cintura – quase como um cinto de castidade. O protagonista demonstra raiva desse tipo de pessoa e não é necessário muito mais do que isso para entender que o principal motivo é pelo fato de não poder consumar nada com o sexo oposto. E isso bastaria. Mas mesmo assim o autor faz questão de deixar isso muito claro após três ou quatro páginas.

E não é a única vez que isso ocorre, pois diversos aspectos facilmente dedutíveis são frequentemente reafirmados, como por exemplo em relação às técnicas de manipulação das massas e no capitulo que o protagonista começa a ler o livro da Confraria. Em um universo de incertezas, deixar tudo muito claro soa quase irônico.

Após o início da jornada de Winston em busca de saber mais a respeito do passado, somos apresentados a uma nova (ou não tão nova assim) personagem chamada Julia. A mesma possui interesse em Winston e rapidamente ambos desenvolvem um relacionamento que é no mínimo curioso de se acompanhar. Porém, essa instigação ocorre pela atmosfera opressora daquele universo e pelo “espírito livre” da mulher, e não pelo fato de ser um casal interessante. Mesmo que ambos gostem muito um do outro, é bastante nítida a diferença entre ambas personalidades, uma vez que Julia está apenas interessada em aproveitar o momento mesmo vivendo em um regime totalitário, enquanto Winston busca pela verdade e, talvez, uma forma de derrubar o Partido. O que os une é um ódio em comum e é no mínimo curioso e angustiante de ver como tudo acontece nas páginas seguintes.

E apesar das explicações desnecessárias em diversos momentos, George Orwell acerta em cheio na terceira e última parte do romance, quando determinado personagem trai o casal. O principal motivo disso é porque não fica claro se esse indivíduo faz isso como estratégia obrigatória da organização inimiga ou se essa Confraria é mais um dos métodos do Partido para manter a população sob controle e eliminar os possíveis rebeldes.

As cenas de tortura e lavagem cerebral não chegam a ser as mais pesadas que se tem para ler na literatura, mas isso não significa que sejam fáceis de serem digeridas. E isso é potencializado quando nós percebemos que tudo aquilo deu certo, trazendo assim um tom bastante pessimista para a obra como um todo. Além disso, tem uma cena em particular que esse traidor transmite uma gravação que mostra Winston jurando cometer atos tão repulsivos e imorais quanto aqueles que o governo pratica.

Mas eu sei o que o leitor deve estar pensando. Afinal de contas, quando se fala em “1984”, não é sobre a trama de Winston Smith que se imagina, mas sim a respeito do “Grande Irmão”. Não são necessários grandes conhecimentos históricos para pescar que a figura deste ser quase onipresente na obra é uma referência a Joseph Stálin, e Emmanuel Goldstein, o líder da Confraria, a Leon Trotsky. O mais curioso é que ambos possuem um peso gigantesco na trama, pois, afinal, sem eles a história do protagonista não aconteceria. Mas nenhum dos dois aparece em nenhum momento. Esse aspecto é curioso, pois é mais ou menos como tudo acontece na vida real: políticos e líderes protagonistas de uma história, mas que o cidadão comum nunca nem conheceu ou viu pessoalmente, e que mesmo assim inspira ou revolta as massas. De certa maneira, é quase como se fossem protagonista e coadjuvante sem nunca terem aparecido em uma cena sequer.

Já ouvi em algum lugar que “1984” passa a sensação de que o autor escreveu tudo “em uma tacada só” e esse sentimento não é à toa. Se tivesse um maior tempo para que George Orwell relesse o próprio trabalho, certamente teríamos um livro com umas 50 páginas a menos no resultado final. Contudo, vale lembrar que o autor escreveu tudo praticamente em um estágio terminal de tuberculose. Ninguém se atentaria a muitos detalhes nesta situação.

Lembro que li “A Revolução dos Bichos” dias antes de iniciar a leitura “1984” e esse tipo de problema de reafirmações e explicações desnecessárias não ocorre neste primeiro, deixando assim a leitura, ao mesmo tempo, simples, complexa e mais prazerosa (por mais que também seja um tanto perturbadora). É claro que esse é uma fábula que utiliza a técnica da alegoria, mas mesmo assim não vejo como justificativa.

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