Giulian Serafim/PMPA
Giulian Serafim/PMPA

O que sobra depois da enchente

Uma das maiores arrogâncias do ser humano é pensar que a natureza está sob seu controle e não o contrário.

Outra grande arrogância é pensar que a tragédia do próximo está distante e nunca irá chegar na porta de sua casa.

Eu mesmo pensava nisso. Nunca pensei que tivesse que sair, em pleno sábado de folga, com água acima dos meus joelhos e caminhar por alguns quilômetros até chegar na casa de um amigo para buscar refúgio. Entrei na estatística dos desalojados.

Não perdi nada, pois meu apartamento fica no terceiro andar. Nenhum de meus vizinhos, na verdade. Os dois primeiros são comerciais. Todos tivemos muita sorte. Eu mesmo só saí de casa porque precisava trabalhar. Meu padrasto optou por ficar para proteger os que ficaram dos invasores. O elemento criminoso nunca dorme.

Naqueles dias, na casa desse meu amigo, intercalava o trabalho de jornalista com a escrita de um livro. Foi o livro mais rápido que escrevi em toda minha vida, mas ainda está incompleto. Em menos de 20 dias preenchi mais de 40 páginas. E ainda faltam algumas. Era para ser uma simples crônica para cá, mas eu tinha tanta coisa para dizer que ficaria cansativo. Portanto, aguardem. Há algo novo, porém amargo, vindo por aí em breve.

Quando voltei para casa, rondei meu bairro. Toneladas de itens domésticos abarrotavam as calçadas. O restante dos prédios não teve a mesma sorte que nós e, portanto, os apartamentos do térreo foram avariados. O cheiro de cardume, lixo, esgoto e mofo predominavam em todas as ruas que passei. Não tenho estômago fraco, mas quando não há qualquer lugar para tomar um pouco de ar fresco, até mesmo os mais fortes sentem vontade de vomitar.

“Jesus, o que aconteceu com meu bairro?”, me peguei pensando enquanto fazia vídeos de toda aquela situação. Acho que se não fosse a minha profissão de jornalista, eu simplesmente contemplaria com algumas lágrimas nos olhos. Mas eu tinha um dever a cumprir.

Mesmo com os pedidos de que não se compartilhasse as fotos dos corpos (eu mesmo fiz esse apelo em um comentário semanal), ainda assim as imagens chegavam até nós. Não conheço a história das pessoas cujo cadáver tive a infelicidade de ver. Era triste, mas era só isso que restava após a enchente: móveis estragados, desolação e os corpos de quem não conseguiu escapar.

Recentemente passamos pela tragédia de uma pandemia. Porém, ainda assim, uma pandemia é algo abstrato demais para a maioria das pessoas. Já a água suja é algo bem palpável, ainda mais quando ela ocupa ruas que outrora eram secas.

O que sobra depois da enchente? Ainda não sei responder.

Eu mesmo acho que não vou ser mais o mesmo homem de antes. Revisei conceitos de amizade, companheirismo e lealdade. Além disso, também fico feliz que algumas decisões que tomei no passado renderam bons frutos no presente. Contudo, acho que o ditado de que “vão-se os anéis e ficam os dedos” muito canalha para quem perdeu tudo.

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