“Midsommar” para seu dia dos namorados

Imaginem comigo por um instante: uma noite de nevasca, uma mulher jovem está sozinha em casa, muito preocupada e chorando ela tenta contato com sua irmã. Sem sucesso, ela liga para o namorado e relata a situação, o mesmo responde para ela não se preocupar, essa situação é corriqueira e sua irmã sempre some. A jovem então responde que: “certo, você tem razão, deve estar tudo bem, eu te amo”. O namorado respira fundo e em seguida completa: “eu te amo também”.

Eu não sei qual é o estado civil de você que acompanhou essa cena comigo na sua cabeça, mas convenhamos que essa respiração funda antes da resposta, nos remete a uma sensação agridoce.

Após essa cena por telefone, vemos que o namorado, chamado de Christian, está em um bar com seus amigos. Fazendo pouco caso da situação da sua namorada, ele expõe para nós que está enrolando o término a pelo menos um ano, mas não tem coragem para isso.

Eis que Dani, sua namorada, liga novamente, ele atende a contragosto. A jovem não diz nada, apenas chora em desespero, sua irmã havia se suicidado e levado seus pais juntos. Agora, com Dani em desespero e sem família, os planos de Christian para o fim do relacionamento são adiados novamente. A cena termina com os dois abraçados. O take da câmera se aproximando na janela, onde temos uma passagem de tempo, saindo do inverno e chegando no verão.

Essa é a cena de abertura do longa “Midsommar”. Segundo filme de terror da carreira do diretor Ari Aster, dividiu opiniões em 2019, principalmente por quem estava esperando algo próximo de sua obra anterior, “Hereditário”.

Fato é que “Midsommar” é um filme de terror sobre uma comunidade nada convencional e isolada, mas que carrega na subjetividade diversos temas sobre, sociedade, religião, aceitação e, como vimos na abertura, relacionamento. O relacionamento sobre a ótica do longa é o que vamos analisar e provar como “Midsommar” também é sobre anti-amor.

Após a passagem de tempos que vemos na primeira cena, observamos que a situação ainda não é boa. Dani ainda está abalada pelo o que aconteceu e Christian mais distante ainda. Prova disso que, enquanto ela está sozinha olhando para o nada no quarto, ele entra e informa que está indo a uma festa, após uma discussão Dani resolve ir junto. Lá ela descobre que Christian combinou uma viagem com seus amigos para o estudo de antropologia em uma comunidade da família de um deles na Suécia, após mais uma discussão ela decide ir junto com ele.

Essas atitudes expõem uma dependência emocional de Dani no seu namorado, querendo sempre estar junto seja por não ter mais família ou por ser uma namorada grudenta. Assim como também temos a dificuldade de Christian em se importar com os sentimentos de Dani, quando ele não acha importante falar sobre a viagem, ou quando decide de última hora avisar que está indo a uma festa. Assim como também Christian não consegue se impor, nem para terminar o relacionamento e nem para dizer não quando necessário.

Ainda antes da viagem, temos uma cena de Dani e Pelle. Pelle é o amigo da Suécia, que morava na comunidade que eles vão visitar. Eles têm uma conversa onde Pelle demonstra seus sentimentos pela tragédia familiar de Dani, onde ela rapidamente pede licença e corre para o banheiro chorar. Nesse momento temos uma transição muito boa, onde quando ela abre a porta do banheiro do apartamento onde estava, o filme corta para o banheiro do avião onde ela chora. Mostrando que o tempo passou até o dia da viagem, porém o sentimento ainda é o mesmo.

Ari Aster é um diretor que acredita muito em composição de cenas, essa que mostra passagem de tempo e o luto ainda vivido pela protagonista. Assim como a passagem de tempo da janela na cena inicial, passando do inverno para o verão.

Após saírem do avião, ainda tem uma cena de carro que, conforme eles vão se aproximando da tal comunidade, a cena vai virando de cabeça pra baixo. Mostrando que eles estão adentrando em um novo lugar, ou que as coisas estão prestes a mudar. Tanta coisa aconteceu, e há tanta coisa para notar entre o casal de protagonistas apenas nesse início. E ainda nem adentramos na parte central do longa.

O primeiro encontro

Chegando na Suécia, a tal comunidade não possui um nome específico, sendo que talvez isso seja de propósito, remetendo que pode ser qualquer uma de muitas que ainda seguem tradições nórdicas no país (espero que não tão extremas). Os moradores estão muito ligados à natureza e oferecem aos visitantes alguns cogumelos alucinógenos.

Durante a viagem dos cogumelos, Dani vê que em sua mão cresce um punhado de grama. Até então tudo tranquilo, ela está curtindo o momento até que Mark, um dos amigos que viajou junto, solta a seguinte frase: “vocês são minha família”. Após essa fala, Dani tem um pequeno surto onde vê sua irmã morta, ela corre e dorme por seis horas. Dani é acordada, mas não pelo sei namorado, mas sim por seus amigos Mark e Josh e informam que precisam seguir viagem.

Essa sequência é interessante não só pelo momento de tensão que o filme proporciona com esse pequeno surto de Dani, mas também vale ressaltar o “desaparecimento” de Christian no momento de crise de sua namorada.

Após o grupo conhecer a comunidade e entender que vão presenciar o festival de solstício de verão, as coisas simplesmente vão acontecendo.

Cada um reage aos costumes dos cidadãos do local, com curiosidade, empolgação e surpresa. Essas reações também distanciam o casal protagonista, tendo em vista que Christian está bem preocupado em dançar juntos com as jovens mulheres que lá residem, enquanto somos apresentados que nesse dia é o aniversário de Dani e que ele esqueceu.

Como se já não fosse óbvio o suficiente o desdém de Christian para com o relacionamento dele com Dani, temos um diálogo brilhante e nada expositivo sobre isso. Uma outra personagem, que também é de fora da comunidade, pergunta a quanto tempo eles estão juntos. Christian responde que faz três anos e meio, mas Dani rebate que na verdade já fazem 4 anos.

Levando em conta que, na cena inicial do filme estávamos no inverno, onde Christian queria por fim no relacionamento e, ao saber da tragédia familiar de Dani não conseguiu ir até o fim, e tivemos aquela transição na janela mostrando a chegada do verão, é fácil supor que devem fazer alguns seis meses daquele ocorrido no início. Seis meses que ,pelo visto, Christian não conta. Seis meses que o relacionamento está sendo empurrado com a barriga.

O roteiro de “Midsommar” é ridiculamente bem escrito, servindo no desenvolvimento da história, quando nos é explicado a parte cultural da comunidade e é falado que o ciclo de vida no local termina aos 72 anos. E também servindo nas rimas visuais que depois que você analisa, são bem óbvias mas cumprem seu dever. Como o foco do texto é no relacionamento vou usar como exemplo a cena quando Christian surpreende a Dani com um bolinho de aniversário e tenta, miseravelmente, acender a vela, mostrando que essa chama, já se apagou.

Saindo da rotina

Um dos grandes trunfos de “Midsommar” é o seu contraste. Diferente de muitos filmes de terror, o longa não busca mostrar o tom sombrio de sua história no visual de sua filmagem, o filme se passa todo durante o dia, elemento usado inclusive no seu marketing, tendo lindas paisagens mas não ofuscando cenas brutais. Exemplo disso é quando descobrimos o que ocorre quando os idosos fazem 72 anos.

Além da violência, também sofremos o suspense de estarmos em um lugar novo e culturalmente diferente. Onde o que é levado com normalidade pelas pessoas que vivem lá, para nós que não somos acostumados acaba sendo algo bizarro. O uso disso para fazer terror, por si só já faz parta da crítica de disparidade social, de diferença cultural e religiosa.

Mas, mesmo com tantos temas e tantas coisas a serem desenvolvidas, como o filme ainda tem espaço para falar de relacionamento? Qual o ponto de ligação entre os temas? Vamos chegar nas respostas, mas com alguns pequenos spoilers. Até lá é importante ressaltar como um filme de terror consegue ter tantas camadas e ainda assim ser de terror.

Muito simples, arte, colocar o valor artístico antes do gênero é um conceito presente durante a realização de longas onde a história é seu conceito são importantes. Temos aqui uma história sobre relacionamento, religião e cultura inserida em uma história de terror e não o contrário.

Não é você, sou eu

Continuando para a resposta do tema central desse texto.

Chegando ao fim do primeiro ato, temos uma cena brutal de um ritual chamado Ättestupa. Esse ritual consiste em um casal de idosos se jogando de um penhasco, mostrando o que acontece depois dos 72 anos. Enquanto as pessoas reagem chocadas com o ocorrido, uma das líderes da comunidade explica o sentido do ritual.

Ele consiste em encerrar o ciclo de vida antes dos idosos ficarem totalmente indispostos e dependentes dos outros. Essa explicação acompanha os sons de gritos e choros da resto da população enquanto o idoso agoniza no chão. Os gritos param quando senhor de idade é finalizado ali mesmo no chão com uma martelada na cabeça.

Após esse ocorrido, cada um dos personagens é afetado de um jeito. Christian fica obcecado pelo local e tenta sozinho tomar conta do estudo. Dani parece ter entendido o propósito do ritual, além de que ela se impõe contra o namorado pela primeira vez.

A próxima cena importante para nossa análise fica mais para frente no filme.

Só restou Dani e Christian. Dani está completamente imersa na comunidade, já trajando as roupas locais e participando de todas as atividades do evento e sendo coroada a “Rainha de Maio”. Enquanto isso, Christian está sendo dopado aos poucos. Ele é direcionado até um galpão onde, uma menina está deitada nua. Envolta dela, outras mulheres de mais idade também estão nuas. Christian começa a ter relações com a mais jovem enquanto as outro gemem igualmente e o incentivam, um cena o tanto quanto constrangedora e bizarra ao mesmo tempo.

Dani está sendo celebrada no festival e, durante o cortejo, ela vê sua mãe passar por ela, além de que temos a imagem de sua irmã morta nas árvores. Não é a primeira vez que Dani vê sua família na comunidade.

Após a cena do ritual Ättestupa, Dani tem um sonho onde vê seus pais mortos no lugar onde os idosos locais pularam, traçando esse paralelo e dando  a entender que ela viu a intenção do ritual na morte de seus pais.

Após o cortejo, ela se direciona até o galpão, curiosa pelos barulhos.

Ela espia através da porta e se depara com a cena de seu namorado tendo relações com outra garota. Dani chora de desespero, mas é aparada pelas mulheres locais, que chegam até ela e, ao invés de falarem algo, choram e gritam igualmente.

Nesse ponto podemos observar um elemento crucial para podermos entender esse ponto do filme. Dani passa o filme todo perdida, sem família e sem amigos, seu namorado inibe suas emoções sem incentivar ela a pôr tudo para fora. Desde o momento que ela chega na Suécia, temos pistas que ela se sente em casa, seja pela viagem de cogumelos, que mostrou um punhado de terra do local crescendo na sua mão, ou seja por abraçar completamente a cultura local, entendendo suas intenções e fazendo parte de suas comemorações.

Mas é na cena onde todos gritam enquanto o idoso agoniza no chão, na cena das outras mulheres sentindo prazer junto com que está tendo relações com Christian, e na cena onde outras mulheres choram e gritam junto com ela que entendemos o ponto central que a comunidade possui, algo que estava faltando e que Dani procurava: empatia.

Empatia é um ponto importante para qualquer relacionamento. E atitudes indiferentes de Christian mostram a falta desse sentimento, sendo isso o principal problema desse relacionamento. É possível traçar um paralelo com a cena do início, com essa da Dani sendo consolada pelas outras mulheres. Enquanto elas a incentivam Dani a colocar seus sentimentos pra fora, chorando junto e gritando mais alto, Christian, ao tentar consolar sua namorada no início, se manteve frio e a segurava a fazendo chorar baixo.

Nessa altura do campeonato não é difícil de entender a atitude de Dani no final do filme. Como ela foi coroada a “Rainha de Maio” é dela a grande honra do final do festival, escolher o último, de nove, sacrifícios.

A escolha fica entre um local sorteado e seu namorado Christian. Dani, visivelmente abalada, não precisa falar nada para entendermos o que vai ocorrer. Durante o ritual que envolve vários corpos de seus amigos e dos outros estrangeiros que estavam lá, Christian encontra seu fim, trajada em uma pele de urso e sendo consumido pelo fogo.

Mais uma vez, Dani e todo o resto da população choram enquanto a cabana onde Christian e os outros sacrifícios estão, pega fogo, choram sentindo a mesma dor deles.

O filme termina com um close no rosto de Dani, onde a expressão de choro aos poucos se transforma em um sorriso. Talvez ela esteja feliz mesmo, afinal encontrou seu lugar, se livrou de alguém que fingia que a amava e agora está segura. Mas, ao mesmo tempo, é triste que ela precisou passar por tudo isso para se livrar de alguém que a fazia tão mal. Agora presa numa comunidade, onde são influenciados por anciãos velhos que entrevistam antigas ruas e as tem como verdade, privando todos do mundo exterior, nesse cenário ela encontrou seu lar.

Sem dúvidas, assim como o início do filme, esse sorriso acompanha o mesmo sentimento do longo suspiro antes de um “eu também te amo”. Sentimento de anti-amor, algo agridoce.

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