Os ossos de meu pai chacoalharam dentro daquele saco

Lembro do som abafado de lona reforçada roçando em alguma coisa sólida e porosa. Com suave terror, me dei conta que “essa coisa” eram os ossos de meu pai e de meu avô chacoalhando.

Mesmo que eu soubesse de antemão que minha avó seria enterrada na mesma gaveta que eles repousavam, confesso que não atinei que os restos de pai e filho teriam de ser exumados para dar espaço a nova ocupante. A ficha só caiu quando o coveiro removeu os dois sacos pretos de uma caixa de grande de metal disposta ao lado do prédio e os levou, um em cada mão, para depositar ao lado do caixão já acomodado em seu devido lugar. Vale registrar que o semblante desse tipo de profissional é sempre confuso, pois deve ser um dos trabalhos mais indigestos do mundo, mas que também precisa ser compreensível com os enlutados. Para aquele homem, fazer aquilo era só mais um dia na luta, mas para mim era tudo que restava de meu pai: um som que sequer era de sua risada ou de sua voz.

“Em qual desses dois sacos ele está?”, lembro de ter questionado a mim mesmo naquele momento.

Acho que Deus colocou um almoço relativamente mais divertido com meu dindo e a família dele horas depois daquele mesmo dia para que eu não ficasse pensando muito nisso. Mas mesmo assim barulho da ossada ficou na minha cabeça durante dias e ainda consigo me lembrar da sensação. Em alguns casos, é quase como se eu voltasse a ouvir. E devo confessar que aquilo me chocou mais do que ver o próprio corpo do meu pai no caixão anos antes.

Não estava realmente triste ou abalado com a morte da minha avó, devo confessar. Hoje em dia, acho que só a morte da minha mãe me deixaria realmente “mal”. Mas lembro de ter derramado algumas lágrimas, mas não por mim mesmo ou pela idosa que descansou. Chorei principalmente pelo meu primo, Cristiano, que parecia estar sofrendo mais do que todo mundo ali. Sua mãe, minha tia e dinda, talvez estava só sendo forte, mas foi ela quem acompanhou a própria mãe em todos seus últimos meses de vida, então provavelmente a dor dela era maior do que a de todos ali presentes. E por favor, não sejamos hipócritas: o sofrimento de alguns é maior do que a de outros sim.

Existe todo aquele clichê reflexivo que nos estimula a sermos mais éticos e humildes, no caso de que “no final, seremos apenas um saco de ossos ao lado de um caixão novinho”. Isso não deixa de ser verdade, apesar de entediante. E no fim, não foi exatamente essa experiência que me deixou mais ético e humilde.

Lembro que, ironicamente, a última coisa que disse para meu pai foi um “tchau” quando ele me deixou em frente ao prédio da minha mãe – ele morreu no dia seguinte vítima de um infarto enquanto estava no banheiro. Não dá para saber se depois, naquele mesmo dia, ele tinha ido no mercado comprar alguma coisa, mas caso não tenha feito isso, a última coisa que ele comprou na vida foi um isqueiro. Ele não era fumante: a gente pegou um desses em uma lojinha de muambas em Esteio porque, no dia anterior dessa despedida, nós tínhamos ido ao Santuário Padre Reus para acender umas velas e esquecemos de pegar uma caixa de fósforos. Tenho esse isqueiro guardado até hoje, mas nunca o usei para acender meu cachimbo.

Caso ele tivesse sido cremado, sua carne evaporaria até sobrar apenas seus ossos, que levariam mais tempo para virar uma pilha de cinzas. Na antiguidade, quando não se tinha conhecimento para produzir chamas em temperaturas mais altas, não era incomum que os rituais de cremação resultassem em um esqueleto sobre os restos da pira funerária. O que faziam com o esqueleto depois variava de lugar para lugar, mas em algum lugar do mundo devem ter tido a ideia de guardar em algum tipo de saco preto.

Esse não é qualquer tipo de relato conclusivo ou com alguma reflexão ou tirada irônica ou cáustica. Eu poderia muito bem fazer qualquer um dos dois se quisesse, pois a morte é uma piada de mau gosto: ou ri ou chora. Acho que, no final das contas, o que mais me inquieta mesmo é a dúvida em não ter certeza se meu pai estava na mão direita ou esquerda do coveiro.

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