Shiki: anime que fez a melhor história de vampiros de todas

De vez em quando, na cultura popular, algumas figuras e hábitos entram em evidência durante algum tempo para depois serem deixados de lado. Não raro, esses aspectos são retomados anos ou até mesmo décadas depois. De certa forma, é algo natural da humanidade. Quase cíclico.

No final dos anos 1990 e começo 2000, uma das figuras que mais teve aparição em produtos culturais foram os vampiros – e também os zumbis, mas vamos deixar estes de lado por enquanto. Caso decida puxar na memória apenas alguns exemplos de filmes que abordavam os chupadores de sangue, você pode lembrar de vários exemplos: “Crepúsculo”, “Blade”, a franquia “Drácula”, “Van Helsing”… E repare que estamos falando apenas do cinema.

Sinto-me na obrigação de dizer que desde criança achei a ideia dos vampiros legal, mas nunca tinha me deparado com alguma história interessante sobre eles. Nem mesmo “Drácula”, que é considerada a obra-prima precursora do gênero, me chamou tanta atenção – na verdade, o livro é bem medíocre. Por isso, sempre que me deparava com algo novo sobre vampiros, eu já pensava: “legal, mais uma história para fazer eu perder meu tempo”.

Admito que pensei isso quando comecei a assistir “Shiki” pouco antes da pandemia começar. E nunca fiquei tão feliz por ter queimado minha língua. Não tenho medo nenhum de dizer que esta é, de longe, a melhor história envolvendo vampiros de todos os tempos. E o curioso é que ela foi contada através de uma fonte inusitada: um anime.

Paciência é recompensada

Antes de tudo, adianto que “Shiki” não é uma história para qualquer pessoa.

Os japoneses são famosos quando se trata de violência e bizarrice em seus animes e mangás. Vale dizer que esta não é, nem de longe, uma das obras mais violentas que existem, apesar de ser muito sangrenta. Porém, mesmo assim, nem de longe é o mais fácil de engolir.

O desenvolvimento é lentíssimo e enganador. Inclusive, o expectador pode se perguntar em muitos momentos aonde o anime quer chegar e o que é realidade ou delírio. Os acontecimentos da trama são frustrantes e trazem um ar de desesperança. Além disso, a história não conta com um protagonista apenas. Só que, ao chegar nos últimos episódios, com as reviravoltas e o clímax atingidos, tudo não só vale a pena como também é capaz de te deixar reflexivo por muito tempo.

Para exemplificar o que quero dizer, vou comparar “Shiki” com ao famoso “costelão 12h” tradicional da culinária gaúcha. Por mais que existam diferentes formas de preparar o mesmo corte de carne, todo mundo que comeu esse prato percebe que ele é diferente de tudo que já se experimentou. Contudo, se ele for preparado e servido antes do tempo ideal, seu sabor não é o mesmo. Assim, é necessário paciência para desfrutar do máximo do potencial que se pode proporcionar.

“Shiki” é a mesma coisa: para que tudo faça sentido e o peso do clímax seja sentido de forma apropriada, é necessário paciência e determinação para acompanhar todo o desenvolvimento. Se esse anime fosse mais curto, tudo isso já era e provavelmente seria mais outra história de vampiros entediante.

A doença misteriosa

Originalmente, “Shiki” foi concebido como uma light novel que foi publicada em 1998, de autoria da escritora japonesa Fuyumi Ono. Curiosamente, ela é casada com Yukito Ayatsuji, que é autor de “Another”, que é um dos meus animes favoritos de toda a vida. Os episódios de “Shiki”, enquanto anime, foram transmitidos na segunda metade de 2010, tendo sido anunciado no ano anterior.

O termo “Shiki” em japonês seria traduzido para algo como “Demônio Cadavérico” ou “Espírito da Morte”. Algumas versões traduzem também para “carniçal”, mas é recomendo cuidado com esta tradução em particular, pois pode acabar associando com o ser mitológico que consome cadáveres. Inclusive, aqui vai um comentário: existem muitos seres do folclore japonês que são muito específicos e que, se traduzido o termo, estaria “tirando” o sentido original. Exemplos disso são a tradução dos “yurei” para fantasma e “oni” como demônio ou ogro. Enfim.

A história gira entorno do vilarejo de Sotoba durante um verão nos anos 1990. Uma doença misteriosa começa a se espalhar ao mesmo tempo novos moradores vão aparecendo no local – estes que, na maioria das vezes, só aparecem durante a noite. Mortes começam a ser registradas devido a doença. Assim, com tais premissas apresentadas no início, a história começa a se desenrolar.

Como eu disse antes: essa premissa em si, talvez, não fosse o suficiente para prender um expectador e convencê-lo a assistir duas dezenas de episódios de um anime com um traço esquisito. Inclusive, ouso dizer que esse enredo inicial lembra bastante “Salem”, de Stephen King, que eu consideraria a segunda melhor história de vampiros de todas. De qualquer forma, eu nunca fiquei tão feliz de ser teimoso. Se tivesse largado nos primeiros episódios, não teria presenciado uma das experiências mais incríveis da minha vida.

Por que é tão bom?

Em um primeiro momento, nós acreditamos que a história giraria entorno de Megumi Shimizu, de 15 anos, mas logo de cara percebemos que ela é só mais uma na trama – apenas aconteceu de ter sido a primeira a ser apresentada. Depois pensamos que o anime se concentraria em Natsuno Yuuki, também de 15 anos, mas logo ele é colocado ligeiramente de lado para, depois, voltar a ter destaque. Em seguida, o protagonismo é divido entre o médico Toshio Ozaki e o sacerdote e escritor Seishin Muroi – coincidentemente ou não, seu livro mais recente se chama “Shiki”. Outra personagem de destaque é Sunako Kirishiki, uma vampira centenária com a aparência de uma criança de 13 anos que pode ocupar o posto de “antagonista” da obra.

Essas aspas não são por mero acaso. Durante 17 episódios, não temos a menor dúvida de que os vampiros são o grande problema daquele universo. Tanto que é inevitável a empolgação quando, na reta final, o médico consiga provar para a população de Sotoba a real natureza sinistra da doença que tem tirado a vida de tantas pessoas.

Contudo, essa euforia se esvanece rapidamente minutos depois e já não temos mais tanta certeza de quais são os verdadeiros monstros na história. E esse o grande mérito de “Shiki”, o colocando como supremo na lista das histórias de vampiros.

Assim como não temos certeza de qual é o protagonista da história, no fim, também não sabemos mais quem é o verdadeiro monstro. É indiscutível que a população de Sotoba quase foi dizimada pelos vampiros, mas forma como a própria encontrou para lidar com o problema é tão controversa e sangrenta que faz com que o expectador não tenha mais qualquer clareza.

Inclusive, existe uma cena de conversa entre Sukano e Seishin na qual ela questiona se seria muito doloroso ser atravessada com uma estaca de madeira. “Meu corpo é pequeno e frágil como de uma criança, ninguém teria qualquer dificuldade nisto”, ela pergunta aflita para o sacerdote, demonstrando angústia. Em uma das últimas cenas do último episódio quase podemos testemunhar seu temor se concretizando de uma forma brutal por um dos personagens que, apesar de um simples humano, demonstra uma ferocidade bestial em sua caçada aos vampiros. Até mesmo Toshio, o médico que foi visto como herói e líder contra seus inimigos, acaba tomando atitudes que talvez não sejam vistas como tão virtuosas.

Em resumo, a condução da história nos leva por um caminho para, no final, nos dar um soco no estômago e um cuspe no rosto. Esse sentimento é elevado de forma exponencial quando lembramos que, dois ou três episódios antes, estávamos empolgados e felizes pelo massacre contra os vampiros. Só que, no fim, nós mesmos nos sentimos confusos e perplexos quando percebemos que nós mesmos poderíamos estar ali, dentre a população de Sotoba, cometendo atos de crueldade.

Mesmo que seja uma luta pela sobrevivência entre duas espécies, é como se a obra estivesse dizendo o tempo inteiro estávamos esperando só uma justificativa para nos tornarmos tão ou mais cruéis e sanguinários do que os vampiros. De forma quase irônica, a melhor história já contada sobre vampiros releva o terror que o próprio ser humano é capaz de proporcionar, ainda mais quando unidos sobre a bandeira de combater um inimigo em comum. E se não fosse o desenvolvimento “longo”, com todas as nuances exploradas, esse efeito jamais seria atingido.

Mais uma coisa

Os traços de “Shiki” não são dos mais bonitos como já dito, sendo que parecem até mesmo burlescos em certos momentos. Porém, quando os vampiros assumem seus olhos negros e é dado destaque para suas presas, é necessário destacar o capricho dos animadores ao causar desconforto no expectador. Então, de forma irônica, até mesmo esse estilo acabou corroborando para a transmissão da mensagem geral da obra.

Agora, a escolha das músicas de abertura (“Kuchidzuke”, de Buck-Tick, e “Calendula Requiem”, de Kanon X Kanon) é magistral. Além das canções funcionarem muito bem sozinhas caso queira ouvir em algum momento, elas transmitem bem os sentimentos ambíguos que o anime transmite. São músicas animadas e tristes, sombrias e alegras, tudo ao mesmo tempo.

A vantagem de histórias como “Shiki”

“Shiki” faz parte das histórias que não foram feitas para ser aproveitadas por um público muito grande. Asso,, é seguro dizer que seus expectadores tendem a ser mais qualificados para interpretar todas as mensagens da obra e os mal-entendidos são mais raros. Porém, infelizmente, existem outras obras japonesas que têm significados tão profundos quanto, mas que são consumidas por um público massivo e idiota.

Vou citar dois exemplos populares.

Em “Shingeki no Kyojin”, sua mensagem a respeito do ciclo de ódio entre povos e nações, que podem parecer ter sentido quando na verdade não têm, passou despercebida no final. Aliás, ouso dizer que essa é uma das obras com um dos fins mais injustiçados e chamados de “ruins”, quando na verdade é só consumida por um público cuja profundidade de compreensão cabe em uma casca de noz. Desta forma, é triste ver como uma história com um sentido profundo seja mal aproveitada por gente que só estava com vontade de ver briga entre gigantes.

Outro exemplo disso é a bela mensagem com relação ao amor que “Kimetsu no Yaiba” traz consigo. Nenhum outro anime conseguiu representar tão bem o amor fraternal entre dois irmãos e entre um homem e uma mulher. Ou um homem e suas mulheres (nossa visão monogâmica nos limita um pouco ao ver a bela relação de Tengen Uzui e suas três esposas). A devoção de Amane a Kagaya, ao ponto de escolher morrer ao lado do marido, é uma das mais belas que podemos acompanhar. Porém, essas sutilezas são despercebidas quando a única coisa que queremos é ver lutas épicas contra onis.

Talvez esses erros dos autores estejam na seleção do público-alvo no fim das contas. Por sorte, este não é o caso de “Shiki”.

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