Ao ler a sinopse e as primeiras 100 páginas de “Humilhado – Como a Era da Internet Mudou o Julgamento Público”, pensei que, em algum momento, o autor falaria sobre a “cultura do cancelamento”. Contudo, não é este o caso. Em nenhum momento do livro o temo é sequer citado. Assim, resolvi ver o ano de publicação da obra (2015) e quando surgiram as primeiras ocorrências do temo segundo o Google Trends. Os gráficos apontam que esse termo começou a entrar em evidência entre 2019 e 2020, sendo que antes sequer havia algo do tipo. Suas contrapartes em inglês (cancel culture ou call-out culture) datam mais ou menos do mesmo período, com algumas pequenas ocorrências curiosas em 2006 e 2009.
Porém, apesar de o termo ser mais recente do que imaginávamos, a própria cultura do cancelamento é mais antiga do que se imagina – até aí, nenhuma novidade. E o autor Jon Ronson expõe muito bem o quanto a internet (mais precisamente o X, antigo Twitter) elevou esse aspecto sombrio da natureza humana a um patamar completamente diferente. Como resultado, isso pode transformar pessoas comuns em “monstros” e ninguém está livre de sofrer isso. A forma como o autor optou por expor essa situação é interessante, mas falha em alguns momentos.
De modo geral, o livro conta diferentes histórias envolvendo a humilhação pública de pessoas que, na avaliação do próprio autor, “não fizeram grande coisa”. E eu concordo com ele até certo ponto. Muitas das pessoas entrevistada foram “canceladas” simplesmente porque fizeram piadas infelizes em momentos inoportunos. Uma mulher teve sua carreira e vida destruídas por uma piada envolvendo AIDS e a África. Assim, é exemplificado com bastante precisão que a vergonha, um dos piores sentimentos, está sendo usado como arma das massas de internautas que se sentem infalíveis – basicamente, o jovem de classe média-alta ativista de Twitter.
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Jon Ronson também destaca o quanto a humilhação pública pode ser usada em outros contextos que não necessariamente envolvendo internet. Ele conta a história de um juiz nos EUA famoso por aplicar as penas mais inusitadas envolvendo a vergonha. Exemplo disso são jovens condenados por matar pessoas ao dirigir embriagados que devem ficar com um cartaz em público dizendo o que fizeram. Ou então pagar uma indenização assinando cheques que têm pedidos de desculpas pelo que fizeram. Por algum motivo, esse tipo de punição tem ampla aceitação popular e o Legislativo não prevê qualquer impeditivo para isso. Ao ser questionado, o próprio juiz parece confiante de que sua metodologia é a mais correta.
Quando disse acima que “até certo ponto” concordo com ele, quero dizer que casos abordados na história me deixaram incomodado e questionando se realmente aquela reação pública não foi justa. Exemplo disso foi um escritor que inventou histórias sobre Bob Dylan para corroborar com o argumento de seu livro. Tais histórias inverídicas foram descobertas por um jornalista pobre e sedento por um furo só dele na esperança de alavancar sua carreira – atitude que, naquele momento, não foi bem sucedida.
Por mais que Jon Ronson deixe transparecer que está “passando a mão” na cabeça de todos os seus entrevistados, exemplos como esse são complicados de defender. Caso tivesse sido algum tipo de erro de apuração ou algo do tipo, é totalmente compreensível e desculpável algum erro pontual. Mas escritores e jornalistas trabalham principalmente com sua credibilidade e se esse tipo de história “menor” for tido como algo aceitável, as fronteiras do que é certo e errado ficariam deturpadas. Talvez um outro tipo de punição pudesse ser mais apropriado, mas algo desse tipo não poderia ser passível de vista grossa.
Será que eu, ou os demais colaboradores do Cova Aberta teríamos a mesma piedade de um autor caso fizéssemos a mesma coisa? Do público, tenho certeza de que não.
Não obstante, o maior problema deste livro me parece a forma como Jon Ronson escolheu escrevê-lo. Como ele também é um documentarista, a linguagem cinematográfica é forte em sua forma de escrever. E isso é problemático, uma vez que a leitura se torna confusa e caótica em muitos momentos. Em vários momentos, era como se o autor estivesse querendo narrar os fatos como se fossem trocas de cenas com cortes secos, que funcionam bem no cinema, mas que não têm o mesmo efeito quando lido. Ou então seria como se ele quisesse que o leitor imaginasse que estivesse inserido em uma conversa com seus entrevistados da mesma forma que um documentário faria. Poucas páginas depois, seu estilo passa a beber de referências literárias do movimento do new journalism que acabam tornando o livro com uma leitura confusa – apesar do tema interessante.
Outro ponto a se observar, como havia dito, é o viés de confirmação que o livro aborda. Por mais que a cultura do cancelamento seja um aspecto tóxico da modernidade, onde cada um está sujeito a ser publicamente humilhado e ter sua vida e carreira destruídas, é necessário cuidado ao analisar cada caso. Isto é: todo mundo comete erros, mas fazer vista grossa para isso é tão perigoso quanto o próprio cancelamento. Acredito que o próprio Jon Ronson não se deu conta de que o efeito colateral terrível da cultura do cancelamento a longo prazo: as pessoas vão passar o pano e ignorar problemas graves quando eles acontecerem.
Apesar disso tudo, “Humilhado – Como a Era da Internet Mudou o Julgamento Público” é um título que vale a pena ser lido e consultado. Ouso dizer que o livro teve a chance de fazer algo ainda mais grandioso e importante, mas uma falta de sensibilidade e senso crítico impediram essa façanha.