Ao longo da história recente, diversos termos e classificações foram criados para denominar pessoas com transtorno de personalidade antissocial – mais conhecidos como “psicopatas” ou “sociopatas”. Uma das primeiras denominações, feitas no século XIX, foi “imbecil moral”. Apesar de grosseiro, o termo não está tão longe da realidade.
Se a condição demorou muito para ser reconhecida, podemos imaginar que suas consequências foram ainda mais tardias. Por incrível que pareça, o termo “assassino em série” ou “serial killer” é mais recente do que se imagina – apesar de termos exemplos muito antigos. E a série “Mindhunter” (2017-2019), da Netflix, conta a história de como toda a literatura moderna entender esse tipo de criminoso. Ou tenta.
Narrada através de duas temporadas e 19 episódios com a duração entre 43 minutos e 75 minutos cada, “Mindhunter” é uma obra que podemos considerar “semi ficcional”. Os dois protagonistas, Holden Ford (Jonathan Groff) e Bill Tench (Holt McCallany), são baseados em dois investigadores do FBI que existem na vida real: John E. Douglas e Robert Kessler respectivamente. Dessa forma, a história narrada ao longo dos episódios mistura fatos verídicos com inventados. Porém, a ideia geral de como os investigadores reais conduziram seus estudos é bastante fidedigna – com algumas licenças poéticas questionáveis.
A história começa em 1977 com Holden Ford atuando como agente especial em caso de negociação com reféns. Bill Tench atua como professor na escola móvel do FBI para treinar agentes dos Estados Unidos a respeito da psicologia dos criminosos – pouco depois, ambos passam a trabalhar juntos nesta tarefa. Assim, aos poucos, Holden começa a se dar conta do quanto a metodologia e o conhecimento disponível é baixo ao se deparar com casos envolvendo criminosos violentos que cometeram múltiplos assassinatos (até este momento, o termo assassino em série não havia sido criado). Dessa forma, contrariando as normas do próprio FBI e com muita insistência, ele arrasta o colega para fazer entrevistas com matadores notórios e que já estavam atrás das grades. O primeiro deles foi Ed Kemper, que de fato existe e segue cumprindo pena até os dias atuais.
Aliás, aqui vai uma curiosidade: em dados momentos, o Kemper serve como uma espécie de “oráculo” para a dupla, bem ao estilo Hannibal Lecter em “O Silêncio dos Inocentes”. No mundo real, Ressler foi consultor de Thomas Harris para compor a trama.
Logo em seguida, a série se desenrola através de uma mistura de dramas pessoas de cada personagem e como o trabalho pode afetar a vida pessoal – algo que é observado tanto na ficção quanto na vida real. Ainda na primeira temporada, também somos apresentados a uma outra personagem que vai trabalhar ao lado da dupla: Dra. Wendy Carr, uma acadêmica especializada em criminosos do colarinho branco (em suas próprias palavras) que passaria a dar consultoria e orientação científica para a recém formada Unidade de Ciência Comportamental (UCC).
Apesar dos percalços enfrentados na primeira temporada, principalmente por conta de atitudes questionáveis de Holden, os esforços e descobertas da equipe começam a ser reconhecidos. Mas nem todos ficam felizes com isso, pois tudo isso acabou rendendo uma aposentadoria forçada ao então diretor-geral do FBI, que era cético com relação a eficiência das ideias de Holden. Aliás, a série é bastante precisa também em mostrar quantos entraves burocráticos e até mesmo morais e políticos são colocados diante de pessoas com ideias novas e ousadas. Tench, como é mais velho e maduro do que seu parceiro, consegue lidar com esse fato mais facilmente.
A química entre ambos os atores é excelente, trazendo quase uma relação entre um irmão mais velho e um mais novo. Porém, conforme os fatos vão se desenrolando tanto nos campos profissionais e pessoais, a relação entre ambos vai esfriando ao ponto de quase parecerem dois estranhos um para o outro. Como um personagem apresentado na segunda temporada fala, Tench deveria servir como o “freio” de Holden caso ele passe do limite, mas seus instintos e ideias eram boas demais para serem ignoradas – mesmo que isso o deixe obcecado em alguns momentos. Em outras palavras, é quase como se Holden fosse um “psicopata do bem” enquanto Tench é um homem de família responsável e com um fardo enorme para carregar – as quantidades industriais de bebida e cigarro consumidos transparecem bem essa cruz.
Por outro lado, a impressão que temos de Wendy Carr é muito mais de um obstáculo a ser superado na trama do que uma personagem de apoio. É quase como se a produção tivesse exigido que fosse dado algum papel de destaque para uma mulher lésbica, mas que não tem muita utilidade a não ser cumprir as duas cotas em uma cajadada só. Essa personagem foi inspirada na enfermeira clínica psiquiátrica Dra. Ann Burgess, que certamente parece ter tido uma carreira e vida muito mais interessantes do que sua personagem. Apesar de ser uma pessoa polida e não ter admitido publicamente, Ann demonstrou um pouco insatisfação na forma como os roteiristas se inspiraram nela própria. Além disso, na história real, as coisas aconteceram ao contrário do que as retratadas na série: ela que consultou Douglas e Ressler para desenvolver seu trabalho na pesquisa sobre vítimas de estupro e acabou sendo convidada para integrar a UCC. Além disso, um de seus dramas pessoais era o fato de ser mãe de quatro filhos, mas acredito que esse tipo de fardo não é tão interessante para a Netflix quanto a homossexualidade.
Independente disso tudo, o grande problema da série “Mindhunter” está na forma como os problemas particulares de cada personagem serve apenas para cumprir tempo de tela e não levam a lugar algum. Não temos qualquer conclusão minimamente satisfatória para esses aspectos. Provavelmente a direção estava incerta sobre a possibilidade de uma eventual terceira temporada e, por isso, não quis bater o martelo sobre diversas questões. Mas não creio que seja esse o caso, uma vez que criador David Fincher afirmou acreditar que a produção se encerraria na segunda temporada mesmo – o que de fato aconteceu. A justificativa foi a baixa audiência em detrimento do alto custo, mas é relativamente compreensível o porquê do primeiro ponto ter sido tão evidente. Ninguém quer despender horas de vida para assistir dramas pessoas irrelevantes em uma série investigativa com um tema tão fascinante quanto serial killers.
Porém, é triste o fato de a série ter sido cancelada, pois existiam diversas outras histórias envolvendo Douglas e Ressler que poderiam ter sido abordadas em temporadas futuras. Um ponto curioso é que, ao longo de toda a segunda temporada, os primeiros instantes da maioria dos episódios retratam flashes da vida de Dennis Radder, conhecido como “Assassino BTK”. Devido ao desenvolvimento cronológico da série (que termina em 1981), dificilmente veríamos Holden e Tench capturando o criminoso (que só foi detido em 2005), mas esse desenvolvimento é curioso. Ao menos nos faz imaginar como teria sido se a série fosse adiante.