Algumas histórias bizarras de jogos online

Os games fazem parte da cultura popular há vários anos, sendo que praticamente todo mundo no mundo inteiro já, ao menos, ouviu falar sobre eles em algum momento. E nem sempre por bem, pois têm muitas vezes que os jogos estão envolvidos em polêmicas. Quem aí não lembra dos mais velhos reclamando quando os mais novos estavam jogando jogos como GTA, Bully, Manhunt ou Resident Evil? Inclusive, mais recentemente, em 2019, um jogo feito em Taiwan chamado Devotion causou um atrito político com a China após colocar uma mensagem zombando do presidente chinês.

E dentro do mundo dos games, existem os jogos online. Um dos estilos mais populares até alguns anos atrás eram os MMORPG, mas atualmente esse tipo de game já não é mais tão jogado. E por se tratar de mundos fictícios vastos e ricos, com a própria comunidade dando vida para a história, não raro surgem histórias estranhas dentro destes ambientes. Em alguns casos, os fatos renderam estudos acadêmicos.

A pandemia de World of Warcraft

Vamos começar por um dos casos mais conhecidos que envolve o “World of Warcraft”. Durante anos, ele foi o MMORPG mais famoso do mundo inteiro. Mesmo que atualmente não conte mais com o mesmo número de jogadores de outrora, certamente deixou sua marca no mundo dos games. Apesar do jogo se tratar de uma luta eterna entre duas facções com interesses e ideologias diferentes, esse caso não tem nada a ver com a trama do game. Aliás, esse tópico voltou à tona em 2020 pelo fato de que esse assunto voltou à tona por conta da pandemia de coronavírus. Além disso, o episódio foi tão emblemático que chegou a virar objeto de estudo de cientistas para entender melhor o comportamento humano durante uma epidemia.

Mas primeiro é interessante comentar um pouquinho do jogo em si para que se possa entender o que aconteceu. “World of Warcraft” é um jogo com temática de fantasia medieval que conta com um sistema de raças e classes, cada uma com suas próprias características e particularidades. Para esse caso da pandemia virtual, nós precisamos entender como funciona a classe dos Caçadores. Eles são um tipo de dano e que podem contar com um bicho de estimação para lutar ao lado. E esse é o ponto chave para entender o que aconteceu. No dia 13 de setembro de 2005, quando o jogo contava ainda apenas com sua versão base, foi lançada uma masmorra que contava com o chefe chamado Hakkar, o Esfola-Almas, e apenas os jogadores de níveis mais avançados poderiam lutar contra ele.

Uma das habilidades desse chefe, chamada de “Sangue Corrompido”, consiste em lançar um feitiço nos jogadores que tirava lentamente os pontos de vida daqueles que fossem atingidos. Além disso, essa magia fazia também com que os jogadores pudessem contaminar a outros que estivessem ao seu lado. Em teoria, o feitiço durava apenas durante os confrontos, desaparecendo após dez segundos ou então com a morte dos jogadores. Porém, as coisas começaram a sair do controle por conta dos animais de estimação dos Caçadores já citados.

Os bichinhos também poderiam ser afetados pelo feitiço, porém, os efeitos não desapareciam após os dez segundos como havia sido programado. Mesmo após dispensados, ao serem invocados novamente pelos caçadores, os efeitos do Sangue Corrompido permaneciam. Com os animais transmitindo a doença para os seus donos, o feitiço que deveria permanecer apenas no local de batalha contra Hakkar, acabou se espalhando por todo o jogo.

Dessa forma, o animal de estimação passava a doença para o dono, que se aproximava de outro jogador e também transmitia a doença, espalhando o problema cada vez mais. Para piorar a situação, o feitiço havia sido feito para jogadores de nível alto. Ou seja: quando a doença se espalhou, os players mais fracos morriam facilmente.

Logo no primeiro dia de lançamento do chefe, os desenvolvedores perderam o controle da situação e o caos estava espalhado. A contaminação já atingia altos níveis e jogadores morriam a cada instante em um ciclo interminável. Além disso, o que mais deixava os jogadores irritados foi com o fato de que o “World of Warcraft” funciona com um sistema de pagamento de mensalidade, mas ninguém conseguia jogar mesmo pagando para isso, pois ninguém conseguia se manter vivo por tempo o suficiente.

Como se não bastasse a situação bizarra e desesperadora, havia um agravante: transmissores “assintomáticos”. Exatamente isso: existiam vetores de contágio que não apresentavam sintomas – muito parecido com o próprio coronavírus. Esses eram os personagens não-jogáveis do jogo, como comerciantes, iniciadores de missões, etc, que acabavam sofrendo com efeito da magia, mas que não morriam. Por outro lado, eles acabavam transmitindo a doença para quem chegasse perto deles. Era uma situação bizarra, pois quando se clicava nesses personagens, eles muitas vezes estavam com os pontos de vida zerados. Portanto, ficava impossível comprar itens ou pegar novas missões.

Não só os desenvolvedores do jogo se mobilizaram para resolver o problema como os próprios jogadores: eles passaram a adotar uma espécie de “quarentena”, evitando as grandes cidades do jogo e apenas se aventurando em locais mais remotos. A própria Blizzard, a empresa dona do jogo, pediu para que os jogadores adotassem esse “distanciamento social”. Mas algumas pessoas não colaboraram e, de propósito, contraíam a doença para espalhar por aí. Alguns jogadores com habilidades de cura tentavam ajudar, mas eram medidas paliativas para a situação.

A empresa só conseguiu resolver o problema apenas no dia 8 de outubro daquele mesmo ano, com uma atualização que impedia que os animais dos caçadores fossem contaminados com o feitiço de Hakkar. No total, foi quase um mês de “pandemia virtual”. E após esse episódio, o caso do jogo virou objeto de estudo epidemiológico, pois possuía uma extrema semelhança com pandemias vistas no mundo real.

A primeira pessoa a estudar o caso bióloga norte-americana Nina Fefferman, da Universidade do Tennessee, que publicou um artigo sobre o assunto no periódico científico The Lancet Infectious Diseases. Além disso, fica de curiosidade, que o evento ficou tão marcado dentro do jogo que a própria Blizzard resolveu “homenagear” o episódio em uma carta do seu outro jogo, Heartstone.

O massacre de Faladore em Runescape

Seguindo no mundo dos MMORPG, “Runescape” é um jogo de mundo aberto, feito pela empresa britânica Jagex, que chegou a ser o mais jogado do mundo nos anos 2000. Também se trata de um jogo de fantasia medieval e, até meados de 2013, ele seguia um sistema de ser um jogo de navegador. Em outras palavras, não era necessário baixar o jogo para poder jogar, bastando só ter uma conexão com a internet.

Mas o que foi o Massacre de Faladore? Tudo começou no dia 6 de junho de 2006, mas para que se entenda o que aconteceu, é necessário explicar como o próprio “Runescape” funciona.

Dentro do jogo, existem várias habilidades que estão relacionadas ao combate propriamente dito, como Ataque, Força, Defesa, Combate à Distância, Magia, etc. E também existem outras habilidades relativas a atividades paralelas, como Corte de Lenha, Arte do Fogo, Mineração, Metalurgia, Pesca, Caça, e assim por diante. Essas habilidades podem ser evoluídas do nível 1 ao 99. E por falar no combate, no jogo existem áreas específicas que os jogadores podem lutar uns contra os outros, sendo que nas áreas mais comuns do jogo isso não é possível. Guarde essa informação, pois ela vai ser importante.

Nosso foco vai ser na habilidade chamada Construção, lançada no jogo em meados de 2006. Com essa habilidade, o jogador pode construir sua própria casa dentro de ambientes próprios, cruzando portais que levam a um espaço próprio. É quase como se o jogador comprasse um terreno em outra dimensão para poder fazer uma casinha para viver. E com base nisso, é importante dizer que é que os jogadores podem visitar as casas uns dos outros quando feito um convite. E foi aí que tudo começou.

Um jogador chamado CursedYou foi o primeiro jogador no mundo a pegar nível máximo na habilidade de Construção e promoveu um evento para que vários outros jogadores pudessem visitar sua casa. O problema é que o jogo começou a travar por causa do alto volume de jogadores em um mesmo espaço – algo que era recorrente no jogo. Isso irritou tanto o CursedYou que ele acabou banindo todo mundo da casa dele. O que ninguém sabia é que houve um bug no jogo nesse momento, mas vamos voltar um pouquinho para que tudo fique claro.

Dentro da habilidade de Construção, os jogadores podem criar uma sala de jogos em suas casas. Nessas salas, é possível construir um ringue de boxe, onde todos podem acabar fazendo uma disputa de socos, sem ninguém perder nenhum item caso perca a briga. CursedYou tinha uma dessas na casa dele e vários jogadores estavam dentro desse ringue de boxe quando ele foi obrigado a expulsar todo mundo.

O que aconteceu em seguida foi que as pessoas que estavam dentro do ringue de boxe na casa do CursedYou puderam continuar atacando outros jogadores lado de fora da casa, o que normalmente não deveria acontecer. E ao invés de ser uma luta com socos, dessa vez todos poderiam usar armas, magias e tudo que tivesse direito. E os jogadores que foram atacados não conseguiam contra atacar, pois o erro aconteceu só com quem tinha sido banido da casa no momento que estavam dentro do ringue de boxe.

Como resultado, o que acabou acontecendo foi um massacre dentro do jogo, principalmente na cidade de Faladore, que ficava próxima ao portal da casa de CursedYou. Três principais jogadores se envolveram nesse ocorrido: Foyboy, Implicity e Durial321, sendo esse último o principal responsável pelos abates mais sérios. Esse jogador se aproveitou da situação para atacar e matar jogadores que tinham itens raros e caros, conseguindo pilhar muitos itens em pouquíssimo tempo e sem a mínima dificuldade. Inclusive, ele conseguiu saquear um dos itens mais raros e caros de todo o jogo: um chapéu de festa verde.

Durial321 acabou repassando esse item para um dos amigos antes de se desconectar do jogo, já temendo que fosse acontecer algo com a conta dele. E de fato aconteceu: a conta acabou sendo banida e esse amigo desapareceu com o seu chapéu de festa verde.

Em uma entrevista posterior para o site Rune Tipes, Durial321 acabou contando que ficou bastante surpreso com o fato de que descobriu que podia atacar outros jogadores sem poder ser contra atacado. Como resultado, ele acabou fazendo isso diversas vezes e achou aquilo tudo muito divertido. Contudo, ele admitiu depois que se sentiu muito mal pelo que fez, pois muitos jogadores acabaram parando de jogar Runescape após perderem itens que levaram tanto tempo para serem adquiridos. Os itens nunca foram recuperados pelos jogadores.

Um dos representantes da Jagex, o Mod Peter, publicou no fórum oficial do jogo um pedido de desculpas pelo erro e que ele já tinha sido corrigido. Todo esse evento durou cerca de uma hora até que os administradores do Runescape fossem informados da situação.

Esse episódio ficou marcado na história do jogo e acabou rondando por diversos locais da internet naquele ano, ficando conhecido como um dos glitchs mais graves já registrados em um MMORPG. Todos os anos, no dia 6 de junho, os jogadores que ainda são ativos em Runescape fazem questão de lembrar do incidente. Em 2016, dez anos depois, a própria empresa acabou lançando um evento para lembrar da situação. Nesse evento, os jogadores acabavam sendo “possuídos” pelo espírito de Durial321 e atacavam outros que não podiam se defender. No final, todos precisavam se reunir para derrotar o chefão do evento: uma versão do próprio Durial321.

E também vale destacar, como curiosidade, que até mesmo o CursedYou acabou sendo banido em agosto daquele mesmo ano, mas não por ter qualquer envolvimento com o evento. Ele acabou sendo chutado do jogo porque estava negociando itens por dinheiro no mundo real, o que é proibido.

A ditadura em Lineage

Por fim, vamos falar sobre a ditadura que um grupo de jogadores impôs dentro do jogo “Lineage”. Exatamente isso: um regime autoritário dentro de um jogo online que foi imposto por um grupo de jogadores. E curiosamente, esse fato rendeu também um trabalho acadêmico. Mas primeiro, vamos falar um pouquinho sobre o jogo em si.

“Lineage” é um MMORPG que fez muito sucesso na Coreia do Sul por permitir que os jogadores formassem guildas e alianças ao longo de suas jornadas. E vale destacar também que neste país asiático, a cultura dos games online é bem mais forte do que no resto do mundo. Tanto que geralmente grandes nomes dos jogos online vêm de lá. O “Lineage” ganhou força na comunidade pela possibilidade de formar grupos com a mesma ideologia e uma série de regras sociais e sistemas políticos internos.

No primeiro Lineage, de 1998, havia uma guilda muito poderosa chamada Drangon Knights, que, tendo o conhecimento de que os outros jogadores não conseguiriam fazer frente ao seu poder, começou a adotar um comportamento lamentável. Dentro de determinadas zonas eles controlavam as áreas de caça e impediam os jogadores novatos de chegar em monstros mais poderosos, impossibilitando a evolução dos personagens e a obtenção de itens mais fortes. Como se não bastasse isso, quando a beta do “Lineage 2” foi lançada, essa guilda se uniu a duas outras mais fortes do servidor para estabelecer um controle ainda maior: a Divine Knights e Genesis, formando a Aliança DK. Essa aliança conseguiu, de uma forma extremamente rápida, se tornar o grupo mais poderoso do primeiro e maior do servidor, chamado Bartz.

Tendo todo esse poder em mãos, as guildas estabeleceram uma ditadura, atacando e matando qualquer jogador que não obedecesse às suas regras. Eles também limitaram o acesso aos principais mapas de caça e passaram a cobrar impostos pela venda e compra de itens dentro do território da guilda.

Isso gerou um ambiente de muita insatisfação dentro do game e os jogadores começaram a se unir pelo “desejo de libertação”. Em maio de 2003, uma parte dos usuários que estavam irritados formaram uma guilda chamada “Revolução Vermelha” e atacaram o castelo que pertencia à aliança DK, enquanto eles estavam distraídos. A Revolução Vermelha foi bem-sucedida, conseguiu conquistar o castelo. Mas o sucesso não durou muito tempo, pois os membros da aliança DK reconquistaram tudo de volta ainda no mesmo mês.

Contudo, o acontecimento acendeu uma chama no coração dos jogadores que estavam insatisfeitos com a tirania e guildas menores foram se unindo para formarem a “Aliança contra DK”. Um usuário chegou a escrever uma “declaração de independência” no mural principal do site do jogo. A declaração comoveu toda a comunidade de “Lineage” e vários jogadores, de outros servidores, largaram os personagens que estavam usando e começaram a criar um novo personagem no servidor Bartz.

Enquanto a resistência foi ganhando mais e mais apoio, houve uma briga interna dentro da Aliança DK e uma das guildas acabou se juntando ao movimento, formando um conglomerado gigante de mais de 32 guildas, que contava com 200 mil jogadores e, em junho de 2004, partiram para uma guerra colossal no maior castelo do jogo.

Só que mesmo com um número muito maior de usuários, a resistência possuía um poder de luta muito menor do que a Aliança DK, pois a imensa maioria eram personagens novos ou ainda muito fracos. Mas eles tinham uma estratégia: os jogadores mais fracos foram se jogando em frente aos ataques e, à medida que iam morrendo, foram formando uma barricada humana, impedindo os avanços dos membros da aliança DK. Com essas condições, os personagens mais fortes do conglomerado de 32 guildas avançaram sobre o castelo e, após uma longa batalha, finalmente a conquistaram.

Porém, em dezembro de 2004, a aliança DK retornou para uma vendeta e conseguiu retomar tudo que havia perdido e logo no começo de 2005, uma segunda ditadura havia começado. Esse novo regime era ainda mais brutal, pois tinha todo o ressentimento do que havia acontecido meses antes. Só que a essa altura, a aliança DK já não era mais o que havia sido um dia, pois havia muita briga interna entre os líderes e isso acabou deixando todo o regime muito frágil. Isso persistiu até março de 2007, mais de dois anos depois, quando eclodiu uma segunda guerra de libertação dentro do servidor. E dessa vez, a Aliança DK foi completamente massacrada e desfeita.

Essa história da ditadura de “Lineage”, principalmente a narrativa da primeira batalha pela libertação de Bartz, se tornou lendária dentro da cultura dos games online na Coreia do Sul. Inclusive, ela é considerada um exemplo de storytelling online por lá, até mesmo porque, dentro dessa cultura de jogos online que é tão forte no país, impera muito a “lei da selva”, ou seja, os mais fortes dominam os mais fracos. Uma história de resistência dessas é quase catártica dentro desse contexto.

O curioso desse tópico é que os incidentes que ocorreram em Runescape e WoW foram por conta de bugs, mas o que marcou de verdade nessa história de Lineage foi puramente o aspecto social. E isso acabou rendendo, em 2012, uma tese de mestrado no departamento de comunicação na Universidade do Estado da Georgia, nos Estados Unidos, pelo estão mestrando Yoon Sang Cho. Isso prova que games, muitas vezes, podem superar uma simples barreira de divertimento.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *