techies1998/Reddit
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“The Witcher”: livros teatrais demais para uma fantasia cinzenta

Quando ouvi falar de “The Witcher” pela primeira vez, acreditava se tratar apenas do jogo. Um amigo próximo na época disse que eu parecia uma mistura de Jaskier com Geralt. Como não conhecia a história e não tinha um PS4 para jogar o jogo, aquele comentário não significava nada para mim. Anos depois, já esquecendo daquele jogo, ouvi falar que sairia uma série na Netflix sobre o universo. E só naquele momento que eu fiquei sabendo que existia uma série de livros que deram origem às duas outras mídias. Talvez esse meu amigo tenha comentado, mas não devo ter dado atenção.

Eu tive que esperar saírem três temporadas, e me sentir órfão de obras de dark fantasy, até começar a assistir a série. Apesar de ser uma produção nos padrões Netflix, com suas pequenas e pontuais lacradas insolentes, me parecia algo minimamente assistível. Eu, ao menos, consegui me divertir um pouco com a história. Porém, quando soube que Henry Cavill havia deixado o elenco, decidi que pararia antes de concluir a terceira temporada. Desse modo, nunca assisti o último episódio lançado e, no que depender de mim, vai seguir dessa forma.

Mesmo assim, fiquei curioso com relação a história do bruxo Geralt de Rívia e, portanto, queria saber como tudo iria finalizar. Assim, no final de 2023, me deparei com uma boa promoção de Black Friday do box completo de livros de “The Witcher”. Acho que aquele foi o final de ano que mais gastei em livros em toda minha vida, pois comprei outros que até agora não li. De qualquer forma, decidi que a leitura daquela saga seria uma das minhas tarefas para 2024.

E devo ser honesto: se eu tivesse gostado de verdade dos livros, eu não teria levado um ano inteiro (intercalando com outras leituras) para concluir. O início da saga é intrigante, com contos que, aos poucos, vão revelando um pano de fundo muito maior do que se imagina e estimulando que continuemos a leitura. Porém, tudo começa a ir ladeira abaixo a partir do terceiro título, “O Sangue dos Elfos”. Mas vamos devagar.

Ficha técnica

A série de livros “The Witcher”, escrita pelo autor polonês Andrzej Sapkowski, é um conjunto de oito obras (até o momento) de fantasia que segue a história de Geralt de Rivia, um caçador de monstros profissional que faz parte de uma ordem de “bruxos”.  A saga combina ação, drama e reflexões filosóficas e começa com duas coletâneas de contos, chamadas “O Último Desejo” e “A Espada do Destino”, e se desenvolve em uma narrativa mais convencional nos romances seguintes.

O autor, Andrzej Sapkowski, nasceu no dia 21 de junho de 1948 em Łódź, Polônia. Antes de se tornar escritor, formou-se em economia e trabalhou como representante de vendas, mas alcançou notoriedade literária nos anos 1980 ao publicar contos de fantasia em revistas locais. Além da série The Witcher, Andrzej Sapkowski escreveu outras obras, como a trilogia A Saga do Fim do Mundo (Trylogia Husycka), composta pelos livros Narrenturm (2002), Boży bojownicy (2004) e Lux perpetua (2006), que mistura fantasia com elementos históricos ambientados na Europa Central durante as Guerras Hussitas.

Uma oportunidade perdida

Em um primeiro momento, “The Witcher” me chamou a atenção devido ao seu formato semelhante ao que eu mesmo usei em meu próprio livro, o “Anos Inférteis”. Ou seja, estamos falando de uma “moldura invertida”.

E aqui uma pequena explicação: uma “narrativa moldura” é um tipo de obra literária que é composta por diferentes contos, mas que possui um pano de fundo introdutório em um texto inicial – este que chamamos de moldura. Assim, ao começarmos a ler uma obra do tipo, primeiro somos apresentados ao universo e logo em seguida somos jogados em diferentes histórias que podem ter a ver ou não com as premissas iniciais. Exemplos de livros do tipo são “Decameron” (Giovanni Boccaccio), “Noite na Taverna” (Álvares de Azevedo) e “Contos Gauchescos” (João Simões Lopes Neto).

Porém, os dois primeiros volumes da obra de “The Witcher” seguem o caminho contrário de uma narrativa moldura clássica. Não há qualquer tipo de texto introdutório e apenas somos “jogados” naquele universo e, ao longo dos contos, somos apresentados ao pano de fundo e o contexto daquele mundo. Este tipo de coisa não é muito comum de se encontrar em livros, filmes e séries, sendo mais comum em jogos como os “Souls-Borne” e alguns mais indie, como “Fear & Hunger”. Portanto, esse aspecto de “The Witcher” me agradou bastante e li os dois livros rapidamente.

Só que essa minha animação tomou um soco na boca do estômago a partir do terceiro livro, quando somos apresentados a uma narrativa convencional em formato de romances. Ouso dizer que Sapkowski não soube mais como conduzir a história daquela forma, mas que pudesse seguir para o caminho que ele gostaria. E isso é uma pena, pois existiam inúmeras possibilidades criativas que foram jogadas no lixo devido a essa troca de estrutura no meio da saga.

Fantasia Cinzenta?

Não raro “The Witcher” é introduzida no balaio do subgênero de fantasia sombria. Porém, eu recomendaria cautela com essa definição e explico o porquê disso.

Fantasia sombria é um gênero de ficção com características muito bem definidas e que não se restringe apenas à literatura, tendo boas histórias em mangás, animes e jogos. Dentre os requisitos exigidos é o balanço entre a alta fantasia e o terror e horror. Daria para dizer, dessa forma, que uma fantasia sombria seria como uma história de terror dentro de um universo fantástico, ou então um universo fantástico que conta com histórias de terror. Outro ponto característico é o foco na decadência humana, violência e cenas de sexo. Exemplos de obras assim é “Berserk”, “Castlevania”, “Anjos da Noite”, “A Torre Negra” e os já citados jogos “Souls-Borne” e “Fear & Hunger”.

“The Witcher” está longe de cumprir todos os requisitos necessários para se enquadrar em uma fantasia sombria – talvez a única característica sejam as cenas de sexo. Não existe qualquer tipo de tensão e sensação de degradação humana, que está entregue a pecados e corrupção, sendo que as tramas políticas parecem mais uma paródia de desdobramentos mais sérios. A presença de monstros também não é suficiente para isso, pois sua condução não tem qualquer tom mais pesado.

Por outro lado, a série também tem elementos dissonantes de uma alta fantasia clássica, como “O Senhor dos Anéis” e “As Crônicas de Nárnia”. A começar com o tom demasiadamente sujo que ultrapassa os limites que seriam aceitos pelos adeptos da fantasia mais tradicional. Além disso, os personagens parecem ser “cinzentos” demais, demonstrando traços de virtude mesmo que suas atitudes sejam contraditórias – o famoso “os fins justificam os meios”. Não existem exemplos de depravação, mas tampouco de virtude. A violência empregada também são toleráveis o suficiente para aparecer em outras obras para um público mais amplo.

Então, como classificar “The Witcher” quando vemos que essa obra não parece se encaixar em nenhum dos dois “extremos”? Pessoalmente passei a chamar este tipo de obra de “Fantasia Cinzenta”, ou “Gray Fantasy”, pois parece o mais adequado. Inclusive, isso resolve o problema de classificar os contos clássicos de “Conan, o Bárbaro”, pois estes mesmos passam por problemas semelhantes ao “The Witcher.

Contudo, por falar no trabalho de Robert E. Howard, o único ponto em comum entre todas essas obras seja justamente o fato de pertencerem ao subgênero de “espada e feitiçaria”. E talvez isso importe mais do que tudo.

Uma peça de teatro confusa

Uma das coisas mais incômodas em “The Witcher” como um todo é que, em muitos momentos, eu achava que estava lendo volumes intermináveis de uma peça de teatro cansativa. Aparentemente, habilidades como narração e descrição são o ponto fraco de Sapkowski, sendo que ele dedicou grande parte de seu tempo em desenvolver sua obra prima através de diálogos.

Caso se tratassem de bons diálogos, talvez este tópico fosse um elogio e não uma crítica. Porém, aqui está o veredicto: são conversas cansativas. Não são trechos reflexivos e filosóficos o suficiente como Dostoiévski faz em suas obras, muito menos algo próximo dos diálogos platônicos. E tampouco são informais, na qual emulam uma conversa natural, tal como Bukowski faz com maestria.

Em resumo: diálogos foram criados para enriquecer um livro e não simplesmente para deixa-lo inchado e esconder as habilidades do escritor em fazer descrições ou narrações. E é exatamente esse o caso dessa série. Inclusive, em muitos momentos me peguei tendo que reler trechos inteiros por não estar entendendo aonde a história queria chegar.

Os diálogos de “The Witcher”, além de preencherem e incharem as páginas da maioria dos volumes, são enfadonhos e muitas vezes não levam a lugar algum. São necessários vários capítulos para que uma conversa leve a algum lugar e isso é levado ao extremo no livro “A Torre da Andorinha”. Em alguns momentos daria para pular várias páginas sem nenhum pudor ou medo de perder algo importante, pois não seria esse o caso. Faltam descrições e narrações mais consistentes e emocionantes na obra.

Contudo, devo admitir que o início do último livro desperta o interesse genuíno por dar uma grande reviravolta e abordar temas relacionados às lendas arturianas. E tudo isso nos é jogado já nas primeiras páginas. E caso seja um fã destas lendas, essa experiência se torna ainda melhor. Neste momento pensei que a história, na reta final, iria ficar mais interessante e empolgante. Mas me enganei e, novamente, os diálogos arrastados infestam a narrativa e deixam a leitura mais monótona do que deveria.

Ainda assim, o pior caso é o do quinto livro, o “Batismo de Fogo”. Esse volume, que é dedicado inteiramente na busca de Geralt por Ciri, é quase como uma imensa história da formação de um grupo de RPG. Aos poucos, os membros do grupo vão se juntando e eles possuem até mesmo “classes” diferentes. E algumas das falhas deste volume está diretamente relacionado às falhas do próximo, o “A Torre da Andorinha”. Isto é: se em um livro temos um foco excessivo no grupo de Geralt, no outro o foco maior é em Ciri. Porém, Sapkowski sabia que seria perigoso escrever um livro inteiro focado na menina e deixar o protagonista de lado. E já devem imaginar que tudo isso com altas quantidades de diálogos que não levam a lugar algum.

Corpo meio-cheio

Não falei sobre os personagens antes porque precisava dessa justificativa inicial dos defeitos de escrita para falar deles. A verdade dolorosa é que, infelizmente, é bem difícil se importar com o que acontece com eles. E talvez isso tenha acontecido pelo fato de o autor não ter tido certeza qual deles deveria manter na narrativa.

Dos primeiros quatro volumes, apenas alguns medalhões são mantidos além do protagonista, como Ciri, Yennefer, Jaskier e alguns poucos secundários que não são tão importantes. A partir do quinto livro, quando as coisas começam a querer “se desenrolar” e os personagens mais sólidos são introduzidos ou reafirmados. Mas mesmo assim, a escrita arrastada e a atitude caricata de a maioria dos personagens acabam estragando o vínculo que podemos desenvolver com eles.

Por incrível que pareça, o Jaskier da série da Netflix ficou melhor devido os devidos filtros aplicados ao personagem, pois nos livros ele é retratado de forma mais inconsequente do que o aceitável. Yennefer, por sua vez, é uma mulher irritante em todas as mídias que foi retratada. Agora, o caso mais curioso é o de Ciri, pois ela é uma personagem oscilante e que talvez foi a melhor desenvolvida. Em alguns momentos, ela parece uma criança mimada e hesitante, mas que consegue se sair muito bem em situações adversas mesmo sendo uma princesa. No final das contas, as toneladas de diálogos enfadonhos não foram o suficiente para despertar uma empatia minimamente genuína pelos personagens, parecendo sempre que há algo faltando com relação a todos eles.

No final das contas

É difícil dizer para alguém “não ler alguma coisa”. Pessoalmente, eu gosto de livros que muitos não gostam e vice-versa. Só para exemplificar, eu acho Tolstói um autor chatíssimo, apesar de reconhecer seu valor. Dos russos, eu prefiro Tchekhov, por exemplo. É como diz o ditado: “Beleza não é relativa, mas o agradável varia para cada um”. E talvez o perigo esteja quando se confunde as duas coisas

Dessa forma, é importante apontar os aspectos falhos da série “The Witcher” e como eles poderiam ser melhorados. Contudo, talvez esses pontos possam ser passíveis de uma maior tolerância para alguns leitores. A história e o universo são relativamente “óbvios” e até mesmo clichês para quem já consumiu diversas obras de fantasia. Porém, ainda assim pode agradar a quem está sedento por mais uma dose de histórias do tipo. Além disso, também deve servir bem como complemento para os fãs dos jogos e da série da Netflix.

A impressão que tenho destes livros é que eles são mais indicados para um público jovem adulto (até mesmo porque não dá para indicar algo assim para menores de idade), que está em um processo de transição entre gostos literários. Porém, é recomendado o devido cuidado ao comprar o box inteiro, uma vez que os dois primeiros volumes podem passar a impressão de que vale a pena consumir a série inteira.

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