Não sei se ainda é aceitável falar sobre Howard Phillips Lovecraft. Caso esse texto e site fossem alguns anos mais velhos, talvez o timing fosse melhor. Contudo, após diversos textos sobre literatura e terror, seria injusto não falar um pouco sobre um dos maiores escritores do gênero de todos os tempos – e um dos que mais li.
Apesar disso, uma dúvida surge na hora de falar sobre esse autor. Seria leviano falar de sua vida e obra, uma vez que isso pode ser achado em outros lugares. Seu racismo e personalidade desprezíveis? Sinceramente, esses assuntos parecem saturados demais, além de que seria melhor analisar isso em conjunto com outros autores problemáticos.
Dentre essas opções, achei uma ideia mais simples: afinal, por que Lovecraft é um dos melhores escritores de terror? Para entender isso, vamos precisar esmiuçar um pouco melhor sua obra.
Antes de tudo, é válida a observação com relação ao fato de que a obra lovecraftiana não foi algo “de caso pensado”, digamos. O autor simplesmente tomava premissas e ideias anteriores que utilizou em trabalhos anteriores e, dessa forma, foi criando de forma quase inconsciente toda uma mitologia. Assim, seu trabalho pode ser considerado uma “colcha de retalhos”, apesar de que cada texto deixava claro que existia um pano de fundo maior e mais complexo.
Quase toda a “sistematização” de sua obra foi feita apenas após sua morte e, até hoje, não é totalmente aceita por todos os leitores e estudiosos. Inclusive, existem contradições entre um texto e outro e, por mais estranho que pareça, esse conflito de conceitos é importante para dar o “charme” do trabalho de Lovecraft. Alguns analistas também acham complicado sistematizar toda a mitologia criada pelo autor, uma vez que alguns contos parecem “deslocados” do universo dele.
De qualquer maneira, um dos arrazoados que podemos chegar é de que aquele homem peculiar e monótono de Providence nos legou uma obra de valor incalculável para o gênero do terror, apesar das polêmicas envolvendo seu próprio trabalho e caráter.
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Linguagem críptica
Uma das melhores provas de fogo para saber se teu inglês é avançado de verdade é ler H.P. Lovecraft no idioma original. Caso não consiga, não sinta como se seu curso da Wizard tenha falhado. Os contos e novelas são desafiadores inclusive para nativos do inglês. Por sorte, contamos com excelentes tradutores aqui no Brasil que nos poupam o trabalho e o vexame. Porém, é válido o alerta de que parte da essência de qualquer texto é perdido em uma tradução. Como dizia Umberto Eco: “Traduzir é dizer mais ou menos a mesma coisa em outra língua”.
Os textos lovecraftianos são marcados pelo uso de palavras arcaicas, frases longas e diversas “voltas” narrativas. Sua escrita também é paradoxal, uma vez que se trata de uma prosa gelada e até mesmo “crua” em certos momentos, mas ao mesmo tempo são capazes de evocar terror em quem lê. Ao mesmo tempo que faltam detalhes descritivos, conseguimos enxergar o terror mesmo sem qualquer explicação maior de como são as criaturas.
Apesar de pessoalmente defender que a leitura deve ser simples até mesmo em obras literárias (parte disso devido a minha profissão de jornalista), faço uma exceção para o trabalho de Lovecraft. Parte do terror e do charme de seu trabalho está justamente na linguagem críptica e quase hermética de seus textos. É notório, contudo, o quanto de sua escrita foi sendo lapidada neste sentido ao longo da carreira e foi se tornando mais acessível, apesar se manter enigmática.
Também precisamos levar em conta que Lovecraft era um erudito autodidata, sendo que ele lia muito sobre diferentes temas e, por isso, não raro sua escrita era influenciada pelos textos científicos – que, por sua vez, são pouco convidativos para não-iniciados. Além disso, um ponto curioso na história do autor é que ele teve acesso a relatórios policiais e médicos quando era jovem, o que acabou também pesando na hora de criar. Aliás, não raro é possível ouvir comentários falando que muitos contos “parece de alguém relatando algo”.
Assim, é interessante ver como tanto a temática de seus contos e novelas quanto as propostas da forma como contar essas histórias acabam combinando bem com essa linguagem.
Ciência e mentes débeis
Lovecraft não inventou na roda ao utilizar elementos científicos em suas histórias de ficção. Diversos autores anteriores a ele tinham essa prática e fizeram isso de forma interessante. Porém, estes elogios aos autores pregressos são tímidos, uma vez que muitas vezes eles carecem de escritas interessantes. Ouso dizer que se não fossem pelas suas premissas inovadoras, talvez suas obras fossem esquecidas.
E talvez seja esse um dos pontos mais curiosos na obra lovecraftiana. Um dos aspectos que marcaram seu trabalho não era exatamente no uso da ciência como uma forma de explicar sua narrativa. Pelo contrário: as criaturas e acontecimentos são tão horríveis e indescritíveis que nem mesmo nossos métodos científicos, produzidos pelas nossas débeis mentes, são capazes de compreender. Histórias como “Nas Montanhas da Loucura” e “A Cor que Caiu do Espaço” são bons exemplos do uso da ciência em uma narrativa de terror explorando esse aspecto.
Lovecraft brincava muito com isso, o que de certa forma era um jeito de zombar do quão pequeno o ser humano é em comparação com coisas que sequer sabemos da existência. Assim, seu terror acaba se tornando mais absoluto. Sem contar que era uma grande quebra de paradigma com o pensamento da época de que a ciência seria capaz de entender tudo.
Neste sentido, Lovecraft tende a ser um autor de terror menos clichê do que a maioria. E sim, a verdade precisa ser dita. Dentro deste universo de conteúdos, nós temos uma máxima irritante de que o “ser humano é o pior de todos os monstros”. Não discordo, pois vejo esse tipo de coisa todo dia. Porém, esse macete parece ser uma desculpa esfarrapada para não exercitar a própria imaginação e pensar em algo que poderia ser ainda mais terrível que nós mesmos. Autores como Stephen King, por exemplo, até podem criar alguns “monstros” interessantes, mas já dá para esperar algo mais “humano” em sua conclusão.
Dessa forma, ao colocar o ser humano como algo insignificante e expor como existem seres ainda piores em todo o universo, a obra lovecraftiana acaba se tornando menos óbvia e mais imprevisível. Mesmo lendo as sinopses dos textos, no fundo não dá para saber o que está por vir. E isso talvez traduza com perfeição aquela máxima que ele mesmo gravou outrora: “o maior de todos os medos é o medo do desconhecido”.
O que são os Mitos de Cthulhu?
Este tópico é interessante para entender o porquê de Lovecraft ser um autor cujos conceitos não funcionam tão bem assim no audiovisual. E essa explicação tem várias camadas.
A obra lovecraftiana foi uma das primeiras a explorar de forma profunda a ideia de seres vindos do espaço sideral – mas não foi a primeira de facto, veja bem. Isso acabou colidindo com os conceitos científicos em voga na época, uma vez que foram exploradas ideias de terror que vão além do sobrenatural ou do humano. E assim que surgem as criaturas da mitologia conhecida como os “Mitos de Cthulhu”.
Na obra de Lovecraft, estes seres vieram do espaço e outros planetas e encontraram na Terra um ambiente propício para viverem, principalmente nas profundezas do oceano. Estes seres habitam o nosso mundo há mais tempo do que nós mesmos existimos enquanto espécie. Além disso, o próprio ser humano seria resultado de uma série de eventos que apenas “sobrou” no final de tudo. Os textos deixam implícito que tais criaturas são implacáveis e eventualmente retornarão a sua glória de outrora. Quando isso acontecer, não haverá nada que a humanidade possa fazer, uma vez que o mero fato de olhar para tais seres já é suficiente para causar loucura e morte.
Isso é exposto com perfeição em “Nas Montanhas da Loucura” quando o protagonista enxerga apenas a sombra de um monstro e isso foi o suficiente para deixa-lo perturbado para o resto de sua vida. Seu colega de expedição teve o azar de enxergar a criatura como um todo e o resultado foi desastroso.
O aspecto terrível de tais seres são explicados através de sua biologia complexa, misturando muitas vezes características de diferentes reinos, como animal e vegetal. Dessa forma, ao chegarem em nosso planeta, eles se adaptaram ao nosso ambiente de forma “perfeita”, resultando em formas alienígenas e difíceis de serem compreendidas. E como muitos destes seres se alojaram no oceano, é comum a visão de tentáculos e escamas, uma vez que são aspectos biológicos mais adequados para ambientes aquáticos.
Toda essa explicação talvez dê uma ideia do porquê de a literatura lovecraftiana ser algo que funcione muito bem em contos e novelas, mas não no cinema. Toda essa ideia de seres de visão terrível e grotesca, mas “lógicos” através de uma explicação, é algo que funciona muito melhor no campo da imaginação do que visualmente. Quando cineastas tentam emular isso, o resultado tende a ser patético, uma vez que não traduzem com perfeição a ideia de Lovecraft. Alguns foram mais bem sucedidos que outros, como por exemplo no primeiro episódio de sua série “O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro” – mas também foi só neste único episódio, porque o resto…
Existe este curta-metragem chamado “Harbinger” que também pescou bem a essência da mitologia de Lovecraft, mas não sei se ela se sustentaria em um filme mais longo.
Até hoje, a obra que melhor captou a essência lovecraftiana que não fosse um livro foi o jogo de videogame Bloodborne. A história do game brinca com a questão de mentes débeis que não conseguem explicar coisas maiores do que elas mesmas, misturando aspectos que transitam entre o científico e o místico. Além disso, como o enredo é contado de forma indireta, através da descrição de itens, diálogos e memórias, se aproxima do aspecto hermético da escrita de Lovecraft que é essencial para que o terror funcione.