“Menina Má”: o precursor do clichê de crianças malvadas

É difícil separar alguns elementos de seus clichês. Diferente do que se possa imaginar, clichês não são necessariamente ruins. Se usados da maneira correta podem ser um recurso de reconhecimento e de conexão com o público, ou uma característica de algum personagem. Por outro lado, se usado forçadamente ele pode rapidamente se tornar caricato e superficial. Um clichê muito recorrente e que, sinceramente, eu nunca entendi muito bem é o do comportamento de crianças assustadoras.

Obras com crianças como vilãs existem aos montes, seja por elementos sobrenaturais ou não. Porém, a forma como se apresenta esse tipo de personagem segue um padrão que com o tempo se tornou um clichê. Talvez para se distanciar da aparência inocente, as crianças malvadas sempre possuem uma maturidade acima da média, bem como sua inteligência e comportamento bizarro. Geralmente elas ficam paradas encarando seu alvo com um olhar sinistro. Mesmo em longas como “Brightburn”, que traz uma versão maléfica do Superman e a criança malvada da vez tem poderes grandiosos, cai nesse clichê mesmo não fazendo sentido.

Já sabendo disso, há uns anos atrás me deparei com uma obra literária que, foi escrita em 1954 mas relançada pela Darkside, foi então que em uma obra do passado eu encontrei uma desconstrução do gênero que eu não sabia que precisava. “Menina Má”, escrito por William March, tem sua trama centrada em Christine e em sua filha de oito anos Rhoda. Ambas estão sozinhas em casa, já que o patriarca da família está fora a trabalho durante uma temporada. Com o passar do tempo, Christine começa a questionar o comportamento da filha, a levando a acreditar que a pequena esteja envolvida na morte de um colega da escola.

Ninguém é inocente

Conforme a leitura avança, se percebe a habilidade de March de lidar com temas sensíveis e de desenvolver narrativamente o tema central da história. A obra é escrita em terceira pessoa de forma que o narrador expõe não só os pensamentos, mas também os sentimentos de seus personagens.

E expor pensamentos e sentimentos é necessário para entendermos alguns pontos do livro. O mais importante é uma premissa de que ninguém é inocente, de forma que nem a pequena Rhoda e nem quem desconfia dela estão livres de julgamentos. Afinal, existe maldade em um adulto que acha que uma criança possa ter cometido um crime desses.

Quanto aos personagens, o desenvolvimento deles é feito de forma curiosa e criativa.

Falando da mãe, Christine, que no inicio da obra aparece vivendo sua vida normal ao lado de sua filha, até que a morte do colega de Rhoda vira uma chave na personagem. Seria mais fácil, e talvez mais arrastado, se víssemos desde o início, o nascimento de Rhoda, que Christine carrega em si uma desconfiança na filha ou que o relacionamento delas é distante. Mas não. De forma não explicita nos é apresentado uma personagem que passa a questionar e investigar os fatos após eles acontecerem, se lembrando de acontecimentos do passado como se estivesse acordando só agora para o que estava bem a sua frente. Fora isso, pode-se dizer que pela ausência do marido ela se sente vulnerável e talvez tenha medo de na saber lidar sozinha com a filha.

Já Rhoda, como dito antes, foge de qualquer clichê que temos hoje em dia. Apresentada como uma menina inteligente, o que mais assusta é sua inocência. Rhoda parece não saber diferenciar o certo do errado, existindo assim apenas atitudes que beneficiam ela mesma. A naturalidade com que isso é exposta é o que torna tudo tão tenso. A inocência e calma da menina são usados como armas para construir o terror em volta da personagem. Após a morte da colega, ela passeia de patins no pátio de seu condomínio e o seu zelador a questiona: “Como pode sair para brincar tranquila após a morte de uma colega?”. Rhoda responde: “Que diferença faz? Afinal não foi eu que morri”.

Sobre o pai, Kenneth, não há muito a ser dito, pois aparece pouco, mais em flashbacks e bem no final da obra. Mas acho curioso a escolha de fazê-lo estar em uma viagem de trabalho do que simplesmente Christine ser uma mãe solo. Talvez por divórcios não serem comuns na época, Kenneth não é um pai ausente ou negligente. Ele apenas não está no momento, mas isso não diminui o peso da solidão de Christine. Eu diria que usar a jornada de trabalho como justificativa de ausência poderia ainda ser efeitos da crise econômica de 1929, que talvez reverberasse ainda até os anos 1950, mas é apenas especulação minha.

Ainda sobre os personagens, vale a pena mencionar a vizinha Mônica e o zelador Leroy. Mônica está aqui para exercer um trabalho de didatismo sobre psicanálise. Volta e meia a personagem levanta ensinamentos de Freud como justificativa para analisar todos a sua volta. Poderia ser uma válvula de escape para a solidão de Christine mas ela está lá para tornar tudo mais difícil. Amenizando o comportamento bizarro de Rhoda e lembrando Christine sobre manter as aparências.

Já Leroy seria a típica pessoa desprezível. Apesar de ser antipático, Leroy é o único que desconfia de Rhoda desde o início, subjugado alguns momentos por Mônica, por ser “esquisitão” ou de uma classe social abaixo. A visão certeira do personagem de que tem algo de errado com Rhoda na primeira vista nos faz torcer pelo personagem. Mas March nos lembra que em sua obra ninguém é inocente e justifica a desconfiança de Leroy com uma obsessão doentia dele pela Rhoda.

Adaptação para o cinema

Apenas dois anos da publicação do livro, uma adaptação aos cinemas foi lançada. Conhecido no Brasil como “A Tara Maldita”, o longa de 1956 foi reconhecido pela atuações de Patty McCormack como Rhoda e de Nancy Kelly como Christine, ambas indicadas ao Oscar de melhor atriz e melhor atriz coadjuvante.

Já em 2018, o ator Rob Lowe, como grande fã da obra se empenhou e escreveu, dirigiu e atuou em uma versão sua da história, onde agora era focada em um pai viúvo e que se passa em uma época mais contemporânea.

No mais, “Menina Má” não é nada menos que influente, não só por ser percursor das “crianças malvadas”, mas devido ao seu tema e seus elementos no terror. William March e sua habilidade narrativa em casar toda a história, com personagens bem desenvolvidos e história influente faz da obra atemporal e notável.

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