São numerosos os artistas que passam anos lutando até conseguir um mínimo de reconhecimento. Não raro, também, são aqueles que acabam sendo reconhecidos apenas postumamente. Essas situações transmitem diversas mensagens aos apreciadores de arte, como a de perseverança e fé. Ou então, a impressão que fica é mais agridoce, principalmente quando descobrimos mais sobre a vida do artista que nunca teve o mesmo reconhecimento que obteve após sua morte.
Vários nomes poderiam ser citados, mas um deles chamou a atenção no século passado. Isto porque, durante toda a sua vida, ninguém sequer desconfiou que ele era um artista de mão cheia, tanto na área da ficção quanto da ilustração. Quem olhava de fora via um simples e recluso zelador de hospitais. Porém, após sua morte, foi descoberto que ele havia produzido uma das mais extensas obras literárias já criadas por um único artista. Estamos falando de Henry Darger, e esta é a sua história e obra.

Henry Darger, foto de David Berglund (1971)
Uma pacata vida de zelador
Quase tudo que sabemos sobre Henry Darger veio de seus diários pessoais. Se sabe que ele nasceu em 12 de abril de 1892, em Chicago, Illinois, filho de Henry Darger Sr., um imigrante alemão, e Rosa Fullman. Sua infância foi marcada por tragédias: perdeu a mãe aos quatro anos e foi separado da irmã recém-nascida, dada para adoção. Após a morte do pai, em 1900, Darger foi internado em instituições para crianças com deficiência mental, onde enfrentou condições severas e punições rigorosas. Ele acreditava que sua tendência a questionar adultos e o fato de fazer barulhos incomuns com a boca, como sons de flatulência, contribuía para o tratamento hostil que recebia. Essas experiências influenciaram profundamente sua obra artística posterior.

Em 1909, Darger escapou do asilo e retornou a Chicago, onde trabalhou como zelador em hospitais católicos até sua aposentadoria em 1963. Levou uma vida reclusa, frequentando missas diárias e colecionando objetos encontrados nas ruas, como sapatos e óculos. Em 1930, estabeleceu-se em um pequeno quarto na Webster Avenue, onde, por mais de quatro décadas, dedicou-se à criação de uma vasta obra literária e artística, incluindo um diário meteorológico de dez anos e diversos diários pessoais.
Existem apenas três fotos dele. Alguns vizinhos e conhecidos afirmam, inclusive, que ele nunca falava com ninguém e ninguém falava com ele, sendo quase “invisível” aos olhos da maioria. A dona do imóvel que ele morava chegou a comentar que, suas conversas, quase sempre eram sobre o clima, sendo que ele tinha certa obsessão em acompanhar a previsão do tempo — quase como se ele tivesse dificuldade em se conectar com as outras pessoas. Uma de suas vizinhas, inclusive, cita a vez que ele afirmou ter nascido em São Paulo, no Brasil, mas todos os seus documentos mostravam que isso não era verdade e ele nasceu em Chicago.
Darger faleceu em 13 de abril de 1973, um dia após seu aniversário de 81 anos, no Lar de Idosos Santo Agostinho, a mesma instituição onde seu pai havia morrido. Em sua última entrada de diário, expressou amargura por nunca ter tido um bom Natal ou Ano Novo. Foi sepultado no Cemitério de Todos os Santos, em Des Plaines, Illinois, com uma lápide que o identifica como “Artista” e “Protetor das Crianças”. Após sua morte, sua obra foi descoberta e passou a ser reconhecida como um dos mais notáveis exemplos de arte bruta.

Um universo fervilhante
O trabalho de Darger só foi reconhecido após sua morte, sendo que sua maior contribuição para a arte foi no ramo da ilustração, pintura e literatura. Nathan e Kiyoko Lerner, proprietários do apartamento onde ele viveu, descobriram seu legado artístico pouco antes de sua morte.
Sua principal criação é o épico ilustrado “In the Realms of the Unreal”, um manuscrito de mais de 15 mil páginas acompanhado por centenas de ilustrações em aquarela. A narrativa gira em torno das “Vivian Girls”, sete irmãs que lideram uma rebelião infantil contra regimes opressores em um mundo fictício. As ilustrações mesclam cenas idílicas com representações de violência extrema, refletindo as experiências traumáticas de Darger. Ele utilizava técnicas de colagem, recortes de jornais e revistas, e criava composições de grande escala, algumas com mais de três metros de comprimento. Aliás, muitas de suas peças eram recriações de outras ilustrações e fotos que ele colecionava de jornais, revistas e cartões postais.
Outra obra significativa é “Crazy House: Further Adventures in Chicago”, um manuscrito de mais de 10 mil páginas. Nesta história, as irmãs Vivian e seu irmão Penrod enfrentam uma casa assombrada por espíritos malignos, onde crianças desaparecem misteriosamente. A trama envolve exorcismos e missas realizadas em cada cômodo da casa na tentativa de purificá-la, embora os esforços sejam em vão.

Seus manuscritos originais nunca foram publicados integralmente. Devido à sua extensão monumental e ao conteúdo visual complexo, a obra permanece inédita em sua totalidade. No entanto, partes significativas do manuscrito e das ilustrações foram reproduzidas em publicações acadêmicas e artísticas. Destaca-se o livro “Henry Darger: In the Realms of the Unreal”, escrito por John M. MacGregor e publicado em 2002. Essa obra oferece uma análise aprofundada da vida e do trabalho de Darger, incluindo reproduções selecionadas de seus escritos e aquarelas. Além disso, o documentário “In the Realms of the Unreal”, dirigido por Jessica Yu em 2004, explora o universo de Darger por meio de animações baseadas em suas ilustrações e entrevistas com pessoas que o conheceram.
Um dos pontos mais curiosos a respeito das aquarelas de Darger é com relação à nudez, uma vez que ela parece possuir uma conotação ambígua. Por um lado, as “Vivian Girls” são vistas despidas em tempos de paz, representando uma mistura de pureza e liberdade em seus campos floridos. Além disso, um detalhe importante é que elas possuem pênis ao invés de vagina, o que gera especulações e teorias sobre o significado. Por outro lado, em diversas passagens, outras crianças são expostas nuas enquanto estão amarradas em postes para passarem frio, o que tem um sentido totalmente oposto ao primeiro — ou seja, a opressão e o sofrimento. Dessa forma, é possível perceber que o universo criado pelo artista tem conotações puras e infantis, quanto sombrias e macabras. Porém, curiosamente, esses elementos puramente infantis deixam de lado qualquer tipo de sentido sexual ou pervertido, o que pode até mesmo ser reflexo do temperamento mais inocente do autor.
Outro ponto ponto de destaque para suas ilustrações são os aspectos extremamente violentos, como em peças que mostram uma crianças com os órgãos expostos em uma cena de brutalidade, ou então quando elas são evisceradas pregadas em cruzes ou estacas. Noutras artes, Darger retrata crianças sendo estranguladas, inclusive chegando a ficar com os rostos com uma coloração mais escura. É importante notar que, nestas cenas violentas, todos os atos de barbárie são realizados por homens adultos vestidos em uniformes militares. O fato de o traço do artista remeter a um desenho infantil deixa tudo com um aspecto demasiadamente sinistro e causando desconforto ao olhar.
Atualmente, as aquarelas de Henry Darger estão distribuídas em diversas instituições culturais que preservam e exibem sua obra única. O American Folk Art Museum, em Nova York, possui uma significativa coleção de suas obras, incluindo aquarelas, desenhos e colagens. O Art Institute of Chicago também abriga algumas de suas peças, permitindo aos visitantes apreciar sua arte em Chicago. Além disso, o Intuit: The Center for Intuitive and Outsider Art, também em Chicago, mantém a Henry Darger Room Collection, que contém materiais originais relacionados ao artista, oferecendo uma visão aprofundada de seu ambiente criativo.

Um legado inquestionável
Sua obra tem sido objeto de estudos e exposições em instituições renomadas. Darger é considerado um dos principais representantes da “outsider art”, e sua influência é reconhecida por artistas contemporâneos e críticos de arte.
A vida e a obra de Henry Darger continuam a intrigar e inspirar, desafiando as fronteiras entre o artista e o outsider, o real e o imaginário. Seu universo particular, criado em isolamento, oferece uma visão única sobre a capacidade humana de resiliência e criatividade diante da adversidade. Darger transformou sua dor e solidão em uma narrativa épica que ressoa com temas universais de luta, esperança e redenção.
Descoberta após a morte de Darger em 1973, a obra revelou um universo ricamente ilustrado, com panoramas extensos e detalhados. A dualidade entre a inocência infantil e a violência extrema presente nas ilustrações contribui para o fascínio e a complexidade da obra, que é considerada um dos maiores exemplos de arte bruta.
