Eu sei, parece estranho falarmos desse tipo de longa por aqui. Mas, como não só de terror vive um nerd, eu me deparei com uma experiência mas sombria do que o habitual em filmes de herói e achei que merecia a menção em nossos conteúdos. “Thunderbolts*” conta a história de um grupo de personagens da Marvel, que trabalham para uma célula secreta do governo, e caem em uma armadilha ao receberem missões para matarem uns aos outros. Sabendo que foram enganados, unem forças para descobrirem o que está acontecendo, enquanto lidam com uma nova ameaça.
Logo na primeira cena já vemos que algo diferente dos demais filmes de heróis está acontecendo. A paleta de cores das cenas é mais acinzentada e a ação de abertura tem pouca trilha sonora e bastante efeito prático, além de expor o sentimento da personagem Yelena, interpretada por Florença Peugh, ao mesmo tempo que ela participa da cena de ação. Essa junção é fruto da união do diretor Jake Schreier, da série “Treta”, e dos roteiristas Lee Sung-Jin e Joanna Calo, da série “O Urso”. Mas, é importante salientar, geralmente diretores autorais não possuem espaço para sua liberdade criativa na Marvel. O máximo que, podemos dizer, que conseguiu isso, foi Sam Raimi em “Doutor Estranho: No multiverso da loucura”, onde Raimi ensaiou um filme de terror, mas se ateve a algumas cenas apenas que fazem um aceno ao gênero.
Porém, Schreier conseguiu fazer um longa onde consegue focar a história para dentro de seus personagens, ao invés de se preocupar apenas com as cenas de ação que escalam em tamanho uma após a outra. Isso traz assuntos sensíveis e mais sombrios, como depressão, vícios, problemas familiares e uma possível deficiência mental.

Não atoa temos aqui personagens esquecidos, algo que condiz com a proposta de uma equipe secreta. Yelena, irmã da Viúva-negra, John Walker, a tentativa de um novo Capitão América, mas que falhou pois matou um homem inocente, Fantasma, vilã do longa “Homem-formiga e a Vespa”, que ganhou seus poderes vítima de um acidente do governo, Guardião-Vermelho, herói da União Soviética que foi esquecido pelo próprio país e busca recuperar sua glória, e o já conhecido Soldado Invernal.
No meio deles temos um personagem que conecta tudo. Bob tem uma simplicidade, representada no seu nome, que transmite uma falsa inocência. O personagem é um viciado e que teve uma infância conturbada, abusado por seu pai e rejeitado pela sua mãe, Bob desenvolveu um lado maligno, que pode ser interpretado como uma esquizofrenia ou bipolaridade. Esse lado aflora quando ele tenta ser uma pessoa melhor, participando do experimento Sentinela. Bob, como Sentinela, possui uma, dentre outras, habilidade de visitar a mente das pessoas vendo seus traumas e seus anseios é aqui que o filme mostra sua temática, a luta interna.
Expondo a depressão de seus personagens, o roteiro, seja em diálogos ou nas cenas de ação passa pelas diversas fases da doença, indo do distanciamento a falta de confiança, fazendo aos poucos com que eles superem isso, fazendo os personagens trabalharem juntos, dando outro sentido para a dinâmica da equipe. Fazendo com que a união desses personagens seja mais significativa.
Essa luta interna ganha um sentido literal com a presença do Vácuo. Assim como Bob, ganha sua versão poderosa com Sentinela, seu outro lado ganha o Vácuo. Um literal vazio, um espectro negro que leva as pessoas para dentro de sua mente.

Toda essa construção nos leva para um ato final grandioso. Mas sem uma batalha gigantesca ou monstros com inúmeros complementos digitais, a luta final é o esforço de resgatar Bob da espiral sombria que a sua vida o trouxe, sendo um dos terceiro ato mais criativos da Marvel.
Falando em criatividade, o próprio Sentinela ganha novos contornos aqui. O personagem é a figura de um herói padrão, poderoso, louro e com capa esvoaçante, uma das muitas cópias do Superman que a Marvel nos quadrinhos tentou emplacar. Sua história nesse longa é da criação de um novo herói, já que “Os Vingadores” não funcionam mais. Isso traz um comentário metalinguístico, como uma autocrítica sobre uma saturação dos filmes de herói, já que o visual do Sentinela é colorido e espalhafatoso demais, e a justifica para ele ser louro é que as pessoas talvez queiram um herói mais “tradicional”.
Nesse ponto o longa pode se assimilar com “The Boys”. Pois Sentinela, ganha uma razão mercadológica para existir, tendo marketing e um anúncio de imprensa, além de que o descontrole parece casar com a ideia de um ser superpoderoso na vida real. Com isso em cena, vendo esses personagens falhos, com vícios e sangue nas mãos, enfrentando o que seria a figura de um herói tradicional, causa a impressão de que “Thunderbolts*” está brigando contra si mesmo, contra o filme de herói genérico que poderia ser.
E isso é possível graças a equipe de mentes criativas. Profissionais de projetos artisticamente consagrados. “Treta”, “O Urso”, diretor de fotografia de “A Lenda do Cavaleiro Verde”, projetos consagrados pela crítica, e de diferentes gêneros. Isso só comprova que o que salva qualquer gênero da saturação é a arte. Seja a ambição de fazer um projeto mais sombrio como este, ou a coragem de inovar em diferentes gêneros.
“Thunderbolts*” nos faz lembrar da época de ouro da Marvel. Com personagens falhos e problemas humanos, Tony Stark tinha sua arrogância e mesmo assim nos fazia torcer por ele, Peter Parker é um garoto com problemas reais que encontra tempo para ser um herói. Esse é o brilho que a Marvel precisa recuperar, sendo mais sombria ou não.