Houve um tempo que uma das maiores ameaças para a comunidade otaku eram os guarda-chuvas com ponta de metal. Hoje em dia, essa piada já é batida e ninguém quase lembra dela. Porém, o motivo de tal gracejo na internet vez ou outra volta a ficar em evidência. Isto é: o anime que deu origem a esse “medo” em muitos otakus. Porém, já adianto que “Another” é um anime com mais camadas de profundidade que aparenta a princípio. Só que, ainda assim, não deixa de ser uma história de terror feita para ser consumida por adolescentes. Não é aquele suspense bobinho ao estilo “Scooby Doo”, mas também se torna ligeiramente banal quando assistido mais velho e experiente. Mas ele cumpre com sua proposta: ser uma história de terror e mistério divertida.
Pessoalmente, durante vários anos, “Another” esteve na minha lista de animes favoritos, juntamente de outros títulos. Hoje em dia, o título seguiria entre meus prediletos, mas sua colocação cairia consideravelmente. O motivo disso é que eu não sou mais adolescente, mas sim um homem de quase 30 anos. Esta talvez seja uma das maiores provas de que apenas a experiência pode nos revelar algumas verdades. Mas vamos analisar cada aspecto da obra.

Contexto
“Another” é uma envolvente série de mistério e horror criada por Yukito Ayatsuji. A história acompanha Kōichi Sakakibara, um estudante de 15 anos que se transfere para a escola Yomiyama North em 1998. Ao chegar, ele percebe uma atmosfera estranha e opressiva, especialmente na classe 3-3, onde os alunos parecem esconder um segredo sombrio. Lá, Kōichi conhece Mei Misaki, uma garota enigmática que é ignorada por todos. Conforme eventos trágicos começam a ocorrer, Kōichi e Mei se unem para desvendar o mistério que assombra a classe desde 1972, quando uma aluna chamada Misaki faleceu e, misteriosamente, continuou a “existir” para seus colegas.
Yukito Ayatsuji, renomado autor japonês, é conhecido por suas obras de suspense e terror. “Another” foi publicado originalmente em 2009 pela Kadokawa Shoten e ganhou adaptações para mangá, ilustrado por Hiro Kiyohara, e para anime, exibido em 2012.
A série expandiu seu universo com duas continuações em light novel. A primeira, “Another: Episode S/0”, lançada em 2013, é uma coletânea que inclui “Another S”, focando em uma aventura de Mei Misaki durante as férias de verão, e “Another 0”, que narra eventos de 1983 envolvendo a tia de Kōichi, Reiko. A segunda, “Another 2001”, publicada em 2020, é uma sequência direta ambientada três anos após os eventos originais, explorando novas manifestações da maldição na classe 3-3.

Muita coisa se perde em uma segunda visita
Não sou uma pessoa que costuma se importar com spoilers, principalmente pelo fato de gostar de analisar e comentar sobre as coisas assisto ou leio. Porém, eu preciso admitir uma coisa: em “Another”, caso se saiba de detalhes da história, muita da graça se perde. E isso é revelado em uma revisita logo no primeiro episódio.
Quando não sabemos absolutamente nada sobre a trama, o primeiro encontro do protagonista Sakakibara e Misaki Mei é, no mínimo, desconfortável e intrigante. A menina, que possui um tapa-olho médico, pele pálida e um cabelo negro nos remete a uma yurei, que são os fantasmas do folclore japonês. Portanto, é natural pensar que ela já não estaria mais viva – principalmente pelo fato de a conversa acontecer no elevador de um hospital.
Porém, quando reassistimos “Another” e já sabemos detalhes da trama, o tom dessa cena passa de tenso para triste. É uma mudança de perspectiva interessante, mas que para por aí e apenas nesta cena. No decorrer dos capítulos seguintes, é evidente que não há nada de muito gratificante em revisitar esse anime, a não ser por mera nostalgia. Contudo, em uma primeira vez, vale a pena acompanhar para descobrir o que está acontecendo.

Decisões narrativas complicadas
Quando analisamos todo o contexto de “Another”, tanto das propostas do universo quanto o público que irá consumir a obra, percebemos que o autor se colocou em situações difíceis de contornar. E aqui precisamos pinçar parte por parte.
Vamos começar pelo mais óbvio: o interesse romântico recíproco que Misaki Mei e Sakakibara desenvolvem um pelo outro – sim, isso acontece, mas é deixado subtendido. Vale lembrar que ambos são adolescentes e que acabam se vendo em uma situação assustadora juntos, podendo só contar um com o outro. E mesmo que cada um possua muito em comum, eles também têm diversas diferenças que complementam um ao outro, o que fazem deles um casal em potencial. Além disso, diversos elementos corroboram com isso. E nem estou falando dos delírios do protagonista em se imaginar dançando com a colega. Existem outros fatores bem mais sutis e até poéticos, como o fato de Sakakibara ter um interesse em escultura e a mãe de Misaki ser uma artesã de bonecas (que não deixa de ser um tipo de escultura). Aí, em dado momento, a própria Misaki diz que não passa de mais uma das bonecas de sua mãe – ela, inclusive, tem um olho falso de uma debaixo do tapa-olho. Já deu para entender a correlação, não é?
Porém, se o autor decidisse desenvolver esse relacionamento entre os dois, o risco de cair em “fanservice” seria gigantesco a ponto de deixar toda a trama de mistério e terror beirando ao ridículo. Isto é: por mais que fizesse sentido que Sakakibara e Misaki se apaixonassem naquele contexto, qual seria a “lógica” de inserir um romance adolescente em uma história de terror? Pode soar paradoxal e confuso, mas é exatamente essa a situação. Assim, tudo acabou virando uma armadilha narrativa que foi necessário evitar, mas que, a consequência disso, foi um gosto de “queria ter visto isso acontecer, mesmo que soasse ridículo”. No final das contas, foi melhor não termos tido isso.

Só que este é o menor de todos os problemas que “Another” traz consigo. A maior armadilha narrativa que esse anime tem é justamente a própria trama.
Dentro das premissas da história, somos convencidos de que a “calamidade” existe devido a uma espécie de maldição que a turma 3-3 carrega consigo por ter ficado “muito próxima da morte”. Dessa forma, é possível imaginar que no universo de “Another” o sobrenatural existe, mas a maior questão é sobre a importância que os personagens dão para ele. Isto é: que ele existe, praticamente ninguém duvida (tirando um diálogo em uma cena que falaremos mais adiante), mas apenas os personagens centrais sabem disso. Porém, não fica claro como o “mundo” enxerga tal situação. Há 27 anos, alunos e familiares de uma mesma turma de uma mesma escola morrem todos os anos e parece que ninguém dá a devida importância para esse fato, nem mesmo a direção da escola. É explicado que foram tomadas medidas para evitar isso, mas nada funcionou e apenas uma teve uma maior taxa de sucesso: negar a existência de um aluno. No entanto, quando vemos todo o contexto, fica bem difícil de “engolir” que algo tão macabro estivesse acontecendo há tanto tempo e ninguém tenha dado a devida atenção. A única resposta que nos sobra é que foi mais fácil, narrativamente, fazer a história funcionar ignorando esse fato, o que demonstra alguma imaturidade ficcional por parte do autor.
Ainda dentro das premissas da história, existem elementos que são “bobos” quando analisamos com mais senso crítico – e por isso que digo que seria melhor assistir “Another” na adolescência. O próprio “mistério” da história, que é o fato de a sala 3-3 ser amaldiçoada com a “calamidade” é um fio-condutor que nos entretém e mantém vidrados na tela, mas ao mesmo tempo não faz sentido. É compreensível o temor dos alunos em quererem evitar contar a verdade para Sakakibara – de que Misaki Mei deveria ser ignorada porque ela “não existe” –, uma vez que poderia quebrar o “encantamento”. Porém, ficam os questionamentos: será que não teria sido melhor avisar ele logo de cara que a sala é amaldiçoada para correr menos risco? Além disso, será que a direção da escola não teve um mínimo de bom senso de não mandar mais gente para essa sala que possui esse histórico? E o pior de tudo: por que deixam as “medidas preventivas” nas mãos de uma outra adolescente líder de turma e não sob a responsabilidade de um adulto mais experiente e maduro? Isso que nem estou mencionando o fato de, no final, descobrirmos que Misaki sabia desde o início quem “estava morto” na sala 3-3 e que muitos personagens têm uma amnésia bem conveniente para a trama…
Todos esses mistérios fazem a trama ir para frente, mas não são verissímeis. E como já dizia o velho Aristóteles que uma história para ser boa precisa “parecer plausível”, quando colocamos nos miúdos dela, vemos suas fragilidades.

O carisma dos personagens
Aqui vemos um dos pontos mais fortes de “Another”: não existe personagem demais e nenhum deles é chato ou “desnecessário”. É evidente que, no final do anime, percebemos que apenas personagens sem grande relevância na trama foram mortos pela maldição da calamidade, mas durante o desenrolar dos acontecimentos tememos por cada um dos que nos são apresentados. E caso fossem personagens sem graça, a história não daria medo algum. Outro ponto interessante é que o autor deixa subtendido o fato de que cada um deles possui complexidades pessoais que acrescentam camadas de profundidade. Contudo, isso não é explorado em nenhum momento, mas não chega a ser um ponto negativo.
É praticamente impossível não se sentir cativado pelos personagens de “Another”. Seja pelo jeito descolado de Naoya Teshigawara, ou então pela timidez “fofa” de Yuuya Mochizuki. Talvez o expectador prefira personagens mais fortes e destemidos, então pode acabar se apegando mais a Izumi Akazawa. Até mesmo os mais escanteados possuem algum carisma. Tem personagens para todos os gostos e nenhum deles é mal trabalhado.
É notável como até mesmo Misaki, que tinha tudo para ser alguém chata e irritante (comportamento típico de uma “gótica trevosa”), é uma personagem interessante. Rapidamente descobrimos que ela é alguém com o passado triste e que, apesar de tudo, ainda é capaz de sorrir e ser carinhosa, principalmente com Sakakibara. Contudo, ela também é forte o bastante para se impor e tomar decisões difíceis nos momentos que isso se faz necessário.
Ironicamente, no meio de tanto personagem secundário bem desenvolvido, no final das contas o único que parece “murchar” é justamente Sakakibara, o protagonista. Inclusive, isso soa proposital, uma vez que nós temos a certeza “implícita” de que ele é um personagem intocável pelo roteiro. Além disso, o fato de ele ter uma personalidade mais “neutra” remete ao próprio expectador, que está imerso naquele universo e tentando descobrir o que está acontecendo. Caso ele demonstrasse algum aspecto mais evidente, talvez pudesse acabar se tornando mais um defeito narrativo. E, ao menos na construção de personagens, “Another” dá aula.
Referências culturais
Um dos elementos narrativos mais recorrentes em histórias japonesas são as referencias culturais que os autores inserem no meio da trama. Porém, algo comum também é que essas referências sejam apenas “mencionadas” sem qualquer desenvolvimento, o que faz com que tudo se torne mais misterioso para quem não conhece detalhes do folclore e lendas japonesas. Normalmente esses aspectos servem apenas para enriquecer as obras e dar mais personalidade, sendo que não costuma ser comum que estes conhecimentos prévios sejam vitais para se entender a trama. Contudo, é evidente que existem exceções, como na franquia de jogos “Fatal Frame”, ou na animação “Kimi no Na wa”, que são obras que a falta de conhecimento das referências prejudica o entendimento.

Em “Another”, existem diversas dessas pequenas “piscadas” para o público que servem para temperar a narrativa, mas não são vitais. Exemplo disso é no primeiro episódio, quando o painel do elevador do hospital não mostra o botão do quarto andar. Em japonês, o número “quatro” pode ser dito ou lido como “yon” ou “shi”. Porém, “shi” também significa “morte”, tendo quase o mesmo som, o que faz com que se associe o número ao mau-agouro e azar. É um pequeno detalhe que dá um sabor a mais para a trama quando se sabe o que significa.
Outro exemplo é no episódio que os alunos estão procurando em uma sala de aula abandonada a “pista” de como para com a “calamidade”, descoberta por um aluno no passado. Teshigawara cita que “não gostaria de virar uma das sete lendas”, apesar de não acreditar em nada sobrenatural tirando a própria maldição da sala 3-3. No Japão, muitas escolas são envoltas por um conjunto de lendas urbanas conhecidas como “Os Sete Mistérios da Escola”. Essas histórias, transmitidas de geração em geração entre os alunos, geralmente envolvem fenômenos sobrenaturais que ocorrem dentro do ambiente escolar. Cada escola pode ter suas próprias versões desses mistérios, mas alguns são recorrentes, como a escada que leva a um mundo paralelo, o piano que toca sozinho à noite ou o espírito de uma estudante que assombra o banheiro feminino.
Continuação inédita em anime
Existe uma light novel, publicada em 2020, chamada “Another 2001” que é uma continuação direta da primeira história. Além de também existir “Another S”, que é um compilado de histórias dentro do universo. Um desses contos chegou a virar uma OVA, na qual mostra a relação de Misaki Mei com sua irmã gêmea, que era “oficialmente” sua prima. Infelizmente, apenas o primeiro volume foi traduzido para português e está esgotado há anos e não se sabe se há planos de trazer os outros volumes para o Brasil. Em breve, tentarei trazer aqui a crítica dos livros, mas vou me basear na versão em inglês – apesar de estudar japonês, atualmente meu nível não é bom o suficiente para ler um livro inteiro.