“Assassinatos do Zodíaco de Tokyo”: o mistério de 40 anos é resolvido

Desde que Edgar Allan Poe inovou ao criar o gênero da narrativa policial, que nada mais é do que uma história de terror contada de trás para frente, tivemos muitos exemplos de excelentes livros, filmes e séries. Contudo, após tantas décadas, o que se pode constatar que é muito difícil fazer algo diferente das fórmulas mais clássicas que já estão estabelecidas. Eventualmente algum autor consegue fazer algo mais diferenciado, como ambientar sua trama em um país teoricamente “muito seguro e pacífico”, resultando no subgênero do “noir nórdico”. Porém, ainda assim, depois de ter consumido uma quantidade satisfatória de narrativas policiais, fica difícil se surpreender com alguma coisa.

Contudo, é gratificante saber que existem ainda algumas joias valiosas dentro do gênero que estão escondidos na literatura de diferentes países. Além disso, mais satisfatório ainda é constatar que existem possibilidades a serem exploradas dentro das tramas de mistério, mas que nem sempre os autores e o público se dão conta disso. Desta forma, foi uma surpresa muito agradável o que “Assassinatos do Zodíaco de Tokyo”, de Soji Shimada, ofereceu em suas páginas. É um livro “perfeito”? Definitivamente não. Contudo, para um gênero literário saturado de ideias e tramas repetitivas, se deparar algo bastante fora da curva e feito de forma bem elaborada é gratificante. Ah, e só uma dica antes de começarmos a análise: o nome engana, pois nos remete ao assassino em série Zodíaco, mas já adianto que não possui nada a ver. Dito isso, vamos lá.

Sobre a obra e o autor

Soji Shimada é uma das figuras mais influentes da literatura policial no Japão. Nascido em 1948, ele é conhecido por revitalizar o gênero do mistério lógico, também chamado de shin honkaku, que remete aos clássicos quebra-cabeças policiais das eras de Agatha Christie e Ellery Queen. Antes de se tornar escritor, ele trabalhou em diferentes áreas, incluindo design gráfico e astrologia, o que influenciou diretamente o estilo peculiar de suas narrativas. Além de sua produção literária, Shimada também atua como crítico e mentor de jovens escritores, tendo fundado prêmios literários para incentivar o gênero honkaku. Ele é defensor da ideia de que o mistério deve ser um jogo justo entre autor e leitor, em que todas as peças do quebra-cabeça estejam disponíveis para a dedução lógica.

Sua obra mais célebre também é sua obra de estreia. “Os Assassinatos do Zodíaco de Tokyo” (Senseijutsu Satsujin Jiken | 占星術殺人事件) foi publicado originalmente em 1981, com algumas edições posteriores que lapidaram algumas características estruturais do texto, mas não modificaram nada a história. O livro é considerado um divisor de águas no gênero de mistério japonês. Com essa obra, Soji Shimada inaugurou uma nova geração de escritores de mistério no Japão. A trama engenhosa e o desafio intelectual lançado ao leitor conquistaram também o público ocidental, especialmente após a tradução do livro para o inglês, que ganhou destaque no circuito literário internacional.

A história gira em torno de uma série de crimes brutais cometidos em 1936, envolvendo astrologia, alquimia e uma perturbadora carta de “confissão” que teria sido escrita por uma das vítimas – apesar de não fazer sentido, uma vez que ele foi o primeiro a ser morto. Anos depois, um jovem ilustrador chamado Kazumi Ishioka e um astrólogo chamado Kiyoshi Mitarai decidem desvendar o mistério, desafiando o leitor a resolver o enigma com as mesmas pistas oferecidas aos personagens — uma marca registrada do estilo de Shimada.

Supostamente, a confissão apontava para o fato de que o patriarca da família Umezawa, muito abastada, era um pintor com delírios místicos e aficionado por temas envolvendo o ocultismo, como astrologia e alquimia. Ele pretendia criar “Azoth”, a figura feminina perfeita, usando pedaços de corpos de outras mulheres que fazem uma referência com as casas do zodíaco e conceitos alquímicos. De fato, os corpos esquartejados das mulheres da família são encontrados, e todas as circunstâncias batiam com a “confissão”, mas como já dito: o patriarca foi o primeiro a ser morto, portanto os fatos não se encaixam. E a partir disso que o mistério se inicia.

Soji Shimada

Revisitando um caso antigo

Uma das coisas que mais chama atenção no livro é o fato de que a dupla de protagonistas não corre qualquer tipo de “perigo”, uma vez que a trama se desenrola a partir da investigação de um caso de mais de 40 anos antes de a história começar. Isto é: mesmo que o responsável pelos homicídios ainda estivesse vivo, estaria bastante idoso e representaria uma ameaça menor para ambos. Dessa forma, nós não tememos, em nenhum momento, pela segurança de Ishioka e Mitarai. Além disso, Ishioka apresenta o caso a Mitarai pelo fato de que o amigo estava enfrentando uma depressão e, dessa forma, ele poderia ter algo com que “se entreter” para conseguir sair desta situação. E como o crime têm relações próximas com conceitos de astrologia e alquimia, temas dominados por Mitarai, tudo acaba convergindo.

Contudo, o fato de a dupla de amigos não correr nenhum perigo não deixa a história menos angustiante de se acompanhar. O motivo disso é que nós nos deparamos com todas as circunstâncias do crime e, indiretamente, somos convidados a montar nossa própria resolução com as pistas apresentadas. Quer dizer: nos últimos dois capítulos, esse convite se torna explícito por parte do autor devido a sua liberdade artística, mas logo no início esse convite é feito. Dessa forma, a leitura da obra se torna mais ativa do que outra do gênero de narrativa policial. Assim, o leitor acaba se tornando também um “personagem” da trama e, por consequência, causa uma angústia raramente vista em obras do tipo. Em outras palavras, essa aflição acontece não pelo perigo que os personagens poderiam correr, mas sim para saber se eles vão conseguir desvendar o mistério, uma vez que as circunstâncias apontam para uma negativa.

E por falar nas circunstâncias do crime, uma coisa precisa ser dita aqui: nossas premissas acabam nos levando a conclusões um pouco equivocadas. Digo isso porque, normalmente, em uma obra de mistério, nós tendemos a acreditar que cada fato da trama foi meticulosamente calculado pelo assassino, que seria um gênio do crime ou algo assim. Porém, quase nunca pensamos que o criminoso teve sorte em diversos momentos e, por isso, acabou conseguindo se safar. Nós não queremos acreditar nisso, pois soaria muito “preguiçoso” por parte do autor – apesar de que na vida real diversos criminosos saíram impunes por mera sorte. Em resumo, em uma história de mistério, nós sempre presumimos que o assassino é um gênio, e não um sortudo.

Dessa forma, no final, é possível concluir que, apesar de os assassinatos terem sido premeditados e arquitetados, também foram favorecidos pelo mero acaso da sorte. Sorte de circunstâncias no momento que cada morte foi realizada, sorte de que na época não existiam técnicas de perícia tão refinadas, e até mesmo sorte de que pouco tempo depois iria se iniciar a guerra na Ásia que, depois, acabou fazendo parte do contexto da Segunda Guerra Mundial. Afinal de contas, por mais que na história os crimes tenham atraído a atenção de todos no Japão, seria difícil dar total foco para algo assim quando um conflito armado com outras potências se avizinhava – por mais macabro que os crimes tenham sido. Mas isso não tira mérito nem do autor dos crimes, muito menos do autor do livro. Na verdade, tudo isso é muito realista e pé no chão. A questão é que nós, enquanto leitores, não queremos ver isso em uma história e pode ser que acabe ficando com um “gosto estranho” na boca, apesar de ter gostado de tudo como um todo.

Agora, talvez, o maior golpe de genialidade em todos os assassinatos foi o fato de que nós somos induzidos a acreditar que foi alguém “de fora” que os orquestrou, apesar de tudo indicar que o autor foi o pai da família. Contudo, um dos pontos de maior mistério na trama é o fato de que o patriarca teria deixado seus “planos” de assassinar as mulheres para criar sua “Azoth”. Só que o detalhe é que ele foi a primeira vítima, morrendo dias antes de todas as outras, então não teria como ele ser o assassino. Inclusive, Ishioka começa a pensar na possibilidade de o homem ter forjado a própria morte e ter matado o resto da família. Contudo, Mitarai no final consegue matar a charada e descobrir que, de fato, o assassino era um dos “mortos” que conseguiu ocultar a própria identidade justamente se passando por uma das vítimas – mas não da forma como imaginávamos.

Dessa forma, conseguimos entender que em toda a trama existiu uma mistura muito bem feita de elementos premeditados com o acaso e a sorte do autor dos homicídios. Mas, novamente: se um crime semelhante fosse cometido hoje em dia, por exemplo, tal mistério não iria durar tanto tempo devido aos refinos modernos da ciência forense – um mero exame de DNA nos cadáveres, que é de praxe na necropsia, já iria revelar todo o mistério. Além disso, o charme de “Assassinatos do Zodíaco de Tokyo” é justamente o fato de ter o aspecto de “remexer no passado”. Em outras palavras, é um artifício que beira a metalinguagem de como uma história de mistério se comporta.  

Personagens humanos, mas irritantes

Os protagonistas são curiosos. Ambos agem como amigos de longa data, mas em dado momento é dito que eles se conhecem não há tanto tempo assim. Aliás, é possível ver como a dupla possui certa dependência emocional um no outro. E o mais intrigante disso é o fato de que toda a história iniciou justamente pela preocupação de Ishioka para com Mitarai e sua depressão, mas Mitarai frequentemente trata o amigo com menosprezo e sendo vaidoso com relação a própria inteligência.

Aliás, não é de se surpreender que o astrólogo tenha mais nenhum amigo e passe por dificuldades financeiras, uma vez que sua personalidade beira ao detestável. Inclusive, sua toxicidade chega ao ponto de sabotar as ideias de Ishioka em procurar um emprego fixo para não depender mais de trabalhos freelancer, pois, se tivesse que bater cartão, não teria mais tanta disponibilidade para visita-lo com frequência. Isso já denota uma certa amizade predatória e complicada, mas o desenrolar das coisas no decorrer do livro nos dão mais motivos para detestar Mitarai – e ele sequer é um gênio tão grande quanto imagina, pois ele teve muita ajuda de Ishioka para desvendar o mistério e chegou ao ponto de, literalmente, quase enlouquecer quando pensou que não iria conseguir solucionar o caso. E se ele trata o melhor e único amigo dessa forma, imagine como ele trata outras pessoas… Mas não precisamos especular muito, pois temos essa resposta páginas depois. Aliás, além de tóxico, ele também é dissimulado, pois não chega a tratar mal Emoto, seu anfitrião que o recebeu em outra cidade, uma vez que este poderia expulsá-lo caso fosse menosprezado tal como Ishioka.

Essa situação é bastante curiosa, pois, logo no primeiro momento tendemos a ter solidariedade por Mitarai, uma vez que a narrativa sob a perspectiva de Ishioka nos informa da depressão que o astrólogo enfrenta. Porém, devido a forma arrogante que ele trata as outras pessoas, fica difícil de manter essa simpatia Mitarai e tendemos a pensar que seus problemas não são somente clínicos, mas sim temperamentais e de imaturidade. Porém, é como pessoalmente costumo dizer: doença significa que é necessário tratamento médico e não significa que a pessoa tenha caráter por causa disso.

A análise mais profunda de personagens fica restrita apenas a dupla de protagonistas, pois, os demais personagens apresentados são bastante “secundários” e servem apenas como “bengala narrativa” para que o autor possa se apoiar em momentos de dificuldade. Exemplo disso é quando a dupla precisa fazer uma viagem e se hospeda na casa de um amigo que é hospitaleiro até demais. Outro momento, antes disso, é quando convenientemente surgem alguns personagens que acabam se tornando peças-chave para a resolução do caso, que seriam filhos de um dos envolvidos que, de forma bem conveniente (mais uma vez), deixou um manuscrito contando detalhes que se tornaram vitais para a resolução do caso.  

Nem mesmo o patriarca da família Umezawa, que foi assassinada, nos é devidamente apresentado, uma vez que até mesmo seu “romance” sequer foi escrito por ele próprio. O resultado é que a grande culpada acabou nos sendo revelada através de sua confissão, que é apresentada no último capítulo e nos entrega o restante das respostas. E por falar nessas respostas, as pontas soltas são amarradas, novamente, por conveniência e sorte, mas isso não chega a tirar o mérito do livro como um todo. A conclusão que tiramos, no fim, é que a assassina tinha seus motivos para fazer o que fez, mas é impossível pensar que ela era uma mera “coitada” na história, uma vez que ela teve frieza suficiente para matar não apenas as pessoas que eram responsáveis pelo seu tormento, mas também inocentes. Além de ter estragado a vida de um homem que não tinha nada a ver, utilizando de chantagem sexual, o tornando cúmplice do crime. No fim, era alguém maligna e não tão digna de pena quanto ela tenta transparecer em sua última confissão. Nada justifica matar e esquartejar pessoas, ainda mais da própria família.

Uma leitura gostosa

Genuinamente, em diversos momentos parecia que a obra parecia ser fruto de uma espécie de “Edgar Allan Poe japonês”, sendo que as circunstâncias bizarras e macabras do crime quase se assemelhavam ao absurdo de “Os Assassinatos da Rua Morgue”. A trama deixa o leitor em um beco sem saída, além de horrorizado pelo aspecto macabro e até mesmo “místico” do caso.

A escrita de Shimada é interessante, pois ela varia entre manuscritos dos envolvidos no crime, a narrativa em primeira pessoa de Ishioka e, principalmente, os longos diálogos entre a dupla de protagonistas. Dessa forma, toda a leitura se torna mais dinâmica e quase teatral. É curioso como esse é o trabalho de estreia do autor, uma vez que a habilidade para equilibrar esses três pilares com coerência é algo que muitos escritores com anos de estrada têm dificuldade. Outro ponto é que a leitura é facilitada, em diversos momentos, por figuras que nos auxiliam na ilustração de coisas como a cena do crime e forma como os corpos foram esquartejados, que seriam muito difíceis de visualizar apenas com texto. Além disso, dá para ter uma boa impressão de Shimada com base em seu posfácio, aparentando ser um autor humilde e que se preocupa com questões envolvendo legado e posterioridade.

A resolução do caso é, no mínimo, curiosa. O fim é bastante “pé no chão” e satisfatório, mas pessoalmente eu ainda iria preferir descobrir que se tratava de algum tipo de crime motivado por crenças malucas tal como somos induzidos a pensar. No fim, a verdade é que essas artimanhas são quase como uma tática de diversão, na qual se induz a acreditar que irá fazer algo, mas depois realiza outra coisa diferente. Segundo uma nota do próprio autor no final da edição definitiva, estes elementos triviais e que zombem de “super detetives” fazia parte de um movimento literário na época no Japão – o próprio Mitarai tece críticas ácidas, apesar de hipócritas, contra o lendário personagem Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle.

Vale destacar que o autor coloca duas cartas, entre os capítulos finais, convidando o leitor a pausar a leitura para tentar descobrir, por conta própria, qual seria a solução do mistério com base nas evidências apresentadas. Pessoalmente, não fiz isso porque estava curioso para ler o desfecho, mas lembro que ao longo da leitura percebi diversos elementos dessa história estavam se encaminhando para um final próximo do que tivemos. Isto é: não era nada “sobrenatural” ou ardiloso, mas sim um mero assassinato motivado por questões financeiras misturado com ressentimentos familiares. Contudo, não dá para negar que é brilhante e, ao mesmo tempo, macabro pensar em toda a solução tido foi desmembrar cinco corpos a ponto de que virem seis e forjar uma vítima que nunca de fato houve.

Contudo, o próprio autor faz uma ligeira autocrítica através dos personagens ao concordar que as circunstâncias do crime só não foram descobertas devido ao fato de terem acontecido em 1936 e não existirem algumas técnicas modernas de investigação. Além disso, nem irei entrar no mérito de ser quase caricato o fato de a assassina passar por pessoas diferentes, uma vez que se trata de uma história ambientada no Japão. Isto, por si só, já chega a ser hilário principalmente para leitores ocidentais.

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