Como a URSS manipulava fotos para enganar o povo

Caso você pense que desinformação e manipulação de imagens para enganar as pessoas é algo que surgiu com a internet, sentimos em dizer que é engano. Como já foi dito em uma matéria anterior aqui do Cova Aberta, o comunismo na União Soviética só foi possível devido a cultura de embuste estatal que data de séculos atrás. Contudo, o regime levou essa prática a um outro extremo.

Além da modificação deliberada de dados escritos e estratégias sofisticadas de desinformação em diversos países do mundo, o governo soviético descobriu uma outra forma de contar suas mentiras: edição de fotos. Isso pode soar estranho em uma primeira leitura, uma vez que esse tipo de prática parece ser próprio da era digital. Além disso, pode soar exótico o fato de se manipular fotografias analógicas. Contudo, isso tudo foi muito utilizado no século passado.

Em Petrogrado, a placa no fundo onde se lia a frase “relógios — prata e ouro” foi trocada para “Lute pelos seus direitos”. Além disso, a bandeira, antes ilegível, passou a dizer “Abaixo a monarquia. Longa vida à república!”.

Entendendo a edição analógica

Vamos por partes. Antes de entender como a URSS manipulava fotos para desinformar, iremos falar sobre a fotografia analógica e como as imagens podem ser editadas.

Por muitas décadas, a principal forma de registrar imagens era através das fotos analógicas. Diferente da fotografia digital, que utiliza sensores eletrônicos, a fotografia analógica depende de filmes fotossensíveis que capturam a luz e armazenam a imagem de maneira química. Após a captura, o filme precisa passar por um processo de revelação em laboratório, onde os negativos são transformados em fotografias impressas.

Apesar da chegada da fotografia digital e das ferramentas avançadas de edição, a fotografia analógica ainda é apreciada por muitos entusiastas e profissionais que valorizam sua estética e o processo artesanal envolvido. A manipulação química e física das imagens conferia um caráter único às fotografias, algo que muitos tentam replicar digitalmente até hoje.

Ao contrário da edição digital instantânea de hoje, a manipulação de fotos analógicas exigia técnicas mais complexas e artesanais. No laboratório, era possível controlar a exposição durante a ampliação da imagem, clareando ou escurecendo determinadas áreas da fotografia por meio de técnicas como “dodge and burn” (clarear e escurecer, respectivamente). Além disso, a escolha do tipo de papel e dos produtos químicos utilizados na revelação influenciava diretamente no resultado final da imagem, permitindo ajustes de contraste, saturação e até mesmo a obtenção de diferentes tonalidades.

Para retoques mais precisos, artistas especializados utilizavam aerógrafos, tintas e até raspagens delicadas para remover imperfeições ou realçar detalhes. Esse trabalho minucioso era muito comum em fotografias publicitárias e retratos, garantindo que a imagem final fosse esteticamente agradável. Outra técnica popular era a coloração manual de fotografias em preto e branco, um processo onde artistas aplicavam tintas especiais sobre as impressões para criar um efeito de cor natural, muito antes da popularização dos filmes coloridos.

Para remover elementos indesejados, os fotógrafos utilizavam tintas especiais e aerógrafos diretamente sobre o negativo ou a cópia impressa. Já para acrescentar algo, era possível combinar diferentes imagens por meio da exposição dupla, sobrepondo negativos ou recortando partes de uma foto para colá-las em outra antes da revelação. Esse processo exigia habilidade e precisão para criar montagens realistas sem que as alterações fossem perceptíveis.

Essas manipulações eram amplamente utilizadas em propaganda, artes visuais e até na política, sendo frequentemente empregadas para reescrever narrativas visuais. E é aí que entra a “mágica” da desinformação promovida pelo governo soviético.

Lênin discursa em frente ao Teatro Bolshoi em 1920. Trotsky, que aparece acima nos degraus do palanque, desapareceu em uma versão posterior editada.

(Re)fotografando a história

A manipulação de fotografias foi uma ferramenta essencial para a propaganda do regime da União Soviética. O governo comunista, frequente e descaradamente, alterava imagens oficiais para reforçar a narrativa do Partido e apagar figuras políticas que caíam em desgraça. Líderes políticos que eram inicialmente exaltados acabavam removidos de fotos históricas quando ficavam indesejados. Esse tipo de censura visual ajudava a consolidar a autoridade do governo e a reescrever a história conforme as necessidades políticas.

Um dos exemplos mais famosos dessa prática envolveu Leon Trótski, um dos líderes da Revolução Russa de 1917. Inicialmente próximo a Lênin, Trótski foi gradualmente apagado da história oficial após sua rivalidade com Josef Stalin. Em diversas fotografias da revolução, onde aparecia ao lado de Lênin e outros bolcheviques, ele foi meticulosamente removido, como se nunca tivesse existido. Esse tipo de edição era realizado por especialistas que alteravam os negativos das imagens com técnicas de retoque manual, aerografia e montagens que explicamos no tópico anterior.

Além da remoção de figuras indesejadas, a União Soviética também utilizava a manipulação fotográfica para criar imagens de eventos que nunca ocorreram ou para exagerar feitos do regime. Fotos de manifestações podiam ser editadas para parecerem mais numerosas, e retratos de Stalin eram retocados para projetar uma imagem mais heroica e paternalista. Essas técnicas ajudavam a construir um culto à personalidade e a reforçar a ideia de que o Partido Comunista era infalível e unificado.

Trótski (batendo continência) foi apagado de versões posteriores de fotos da Revolução Russa, principalmente nas que aparecia ao lado de Lênin. Note que nesta, o editor precisou remover outro homem do fundo, provavelmente devido a limitações técnicas.

A manipulação de fotos pela União Soviética não era apenas uma questão de propaganda interna, mas também uma forma de controlar a memória coletiva. Com a exclusão de opositores e a fabricação de imagens favoráveis ao regime, o governo moldava a percepção da história de acordo com seus interesses. Hoje, esses exemplos servem como um lembrete do poder das imagens na construção da realidade e da necessidade de análise crítica sobre registros históricos, especialmente em tempos de desinformação digital.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *