Já foi dito em uma outra análise nossa que as histórias de detetive são, na verdade, histórias de terror contadas de trás para frente. Assim, seria quase impossível não pensar que “Death Note” teria igualmente potencial para ser uma história escrita por um dos grandes mestres do horror. Aliás, o próprio Stephen King tem um conto, chamado “Obituários”, que tem uma premissa extremamente parecida com a do anime – aliás, as semelhanças tão tantas que até desconfio que ele acompanhe alguns secretamente. Dessa forma, é nítido o porquê de “Death Note” fascinar em um primeiro momento: ele pesca com maestria os elementos mais clássicos da narrativa policial para contar uma história eletrizante.
Contudo, esse anime é daqueles que são muito mais profundos do que se imagina. Pessoalmente assisti pela primeira vez quando tinha entorno de 13 anos de idade e, naquele tempo, meu foco era em procurar saber quem era mais inteligente: Kira ou L. Só que em uma segunda assistida, com mais que o dobro de idade, a experiência de se assistir “Death Note” muda bastante e diversas nuances que passam despercebidas em um primeiro momento ficam claras.
Talvez, um dos principais problemas de “Death Note” não tenha sido, necessariamente, sua história em si, mas sim o local onde ela foi publicada e disseminada. Sua primeira aparição foi através de mangá na Weekly Shonen Jump, que é uma revista focada em um público masculino mais jovem. Assim, é natural que as camadas de complexidade morais e éticas passam despercebidas por um público desses. E, como consequência, as discussões acerca da obra que circulam na internet acabam sendo mais rasas. Outros animes e mangás sofreram de problemas semelhantes e, ao que parece, vão seguir sofrendo enquanto o mundo for mundo.
E isso tudo é triste, uma vez que “Death Note” facilmente entra no cânone das melhores histórias já escritas – mas não pelos motivos que se imagina.
Contexto
“Death Note” é um dos animes e mangás mais populares e influentes da cultura pop japonesa, criado por Tsugumi Ohba e ilustrado por Takeshi Obata. A história acompanha Light Yagami, um estudante brilhante que encontra um misterioso caderno chamado Death Note, capaz de matar qualquer pessoa cujo nome seja escrito em suas páginas. Inicialmente motivado por um senso de justiça distorcido, Light decide usar o caderno para eliminar criminosos e criar um mundo utópico sob sua própria visão. No entanto, sua ambição o coloca no caminho do enigmático detetive L, iniciando um intenso jogo de inteligência e manipulação.
Ao longo da narrativa, Light e L protagonizam uma batalha intelectual repleta de estratégias complexas e reviravoltas. Além disso, os personagens secundários, como Misa Amane, Near e Mello, também desempenham papéis cruciais na trama, acrescentando camadas à história. Com uma estética sombria e um enredo envolvente, “Death Note” conquistou fãs ao redor do mundo e influenciou diversas outras obras do gênero thriller psicológico. Mesmo após anos de seu lançamento, a série continua sendo referência na cultura geek e um dos animes mais recomendados para quem busca uma história intrigante e cheia de suspense.
Além do mangá e do anime, “Death Note” se expandiu para diversas outras mídias, incluindo filmes live-action, light novels, jogos e até adaptações ocidentais. A primeira adaptação para o cinema ocorreu no Japão em 2006, com os filmes Death Note e Death Note: The Last Name, que seguem a história principal do mangá, mas com algumas diferenças significativas no desfecho. Essas adaptações fizeram grande sucesso e levaram à produção de L: Change the World (2008), um spin-off focado no icônico detetive L, e Death Note: Light Up the New World (2016), uma continuação que apresenta novos personagens e seis cadernos da morte em circulação pelo mundo.
Nos jogos, “Death Note” também teve algumas adaptações para consoles como Nintendo DS, onde os jogadores podiam assumir os papéis de Light ou L e participar de desafios estratégicos envolvendo lógica e dedução. Além disso, o universo da série foi expandido por meio de light novels, como “Another Note: The Los Angeles BB Murder Cases”, que narra uma investigação de L antes dos eventos principais da história. Essas obras oferecem um aprofundamento no universo de “Death Note” e exploram mais detalhes sobre seus personagens e tramas secundárias.
Ah, lembrando também que a franquia também teve uma adaptação ocidental lançada pela Netflix em 2017, dirigida por Adam Wingard. No entanto, o filme recebeu críticas negativas – e não é por menos, pois ele é péssimo.

Muitas questões sem qualquer preocupação de responde-las
Uma das principais diferenças que “Death Note” acaba trazendo consigo quando se assiste muito jovem depois mais velho é que os dilemas morais se tornam mais explícitos. O fato é que quanto mais se pensa a respeito destas questões, menos certeza se tem de qualquer resposta. E um detalhe que se passa despercebido ao longo da obra é que esta situação é proposital. Temos um vislumbre disso logo no segundo episódio.
Em dado momento, Light Yagami questiona ao shinigami Ryuuk se ele próprio havia sido escolhido para ser o “deus do novo mundo” ou qualquer coisa do tipo. Porém, a criatura é simples e direta ao dizer que o protagonista não era nenhum tipo de eleito ou qualquer coisa do tipo, pois ele apenas teve o acaso de encontrar o caderno da morte. Isto é: se qualquer outra pessoa tivesse passado um minuto antes no mesmo lugar, o rumo da trama seria diferente.
Este pequeno detalhe pode soar quase niilista e dar um tom de “indiferença” para a obra, mas não é bem isso que acontece principalmente quando se olha com atenção os desdobramentos subsequentes. Na verdade, este pequeno e enxuto diálogo releva que, na verdade, apesar de ninguém ser tão genial quanto Light Yagami é, todos temos potencial de sermos “Kira”. Mesmo que não se tenha qualquer ambição de ser o “deus do novo mundo” tal como ele quis, é impossível pensar que qualquer um não se sentiria um “deus” ao poder matar qualquer pessoa com uma simples “canetada”. Dessa forma, como consequência, todas as demais questões éticas e morais acabam vindo como consequência.
No último terço da história, “Kira” acaba se tornando o símbolo maior da lei e da moral no mundo, sendo que muitos países passaram a considerar sua “justiça” como algo inquestionável. A história, propositalmente, não nos mostra diretamente os efeitos sociais causados pelas ações de Kira e estes são apenas mencionados. As guerras no mundo pararam e os índices de criminalidade diminuíram 70%. Porém, como o próprio personagem Aizawa afirma, essa paz é meramente “postiça” e se baseia no medo. Contudo, é inegável que suas ações trouxeram resultados minimamente “positivos” para o mundo.
Vale chamar atenção para o fato de que não se vê as demais implicações desta situação criada por Kira. Vamos imaginar, por exemplo, que uma mulher decida expor online o nome e o rosto de um homem que teve uma desavença, o acusando de ser um estuprador, e daí Kira apenas resolve o mata-lo com base nestas informações. E caso pense que esse cenário é muito absurdo, basta pensar em todas as vezes que isso aconteceu na vida real e o homem em questão foi linchado ou assassinado, mesmo tendo sido vítima de uma calúnia. Neste momento, qual seria a decisão dele? Matar também a mulher que causou a morte de um inocente? Provavelmente sim. Só que no fim das contas as coisas vão terminar assim como Ryuuk disse no primeiro episódio: “no final, você se tornará o único filho da puta vivo”. Então, por mais que Kira tivesse qualquer tipo de intenção minimamente justa de melhorar o mundo, no final das contas seu julgamento nunca poderia ser perfeito – em outras palavras, sua ideia é boa, mas o fator humano em sua aplicação a torna inviável.
E mesmo que fosse o caso de ser uma pessoa com ideais justos, já no segundo episódio temos um vislumbre bem claro de que Light Yagami não é nenhum tipo de santo e está disposto a matar todos que fiquem em seu caminho. Isso fica muito claro quando L usa um criminoso condenado à morte para que Kira o mate e prove seu ponto: no fim, ele não passa de um assassino com complexo de deus. E tudo isso acaba se tornando ainda mais e mais claro conforme os episódios vão passando e ele vai fazendo muitas coisas para evitar ser pego – inclusive matando pessoas inocentes ou que apenas estavam trabalhando na investigação. Dessa forma, conseguimos entender rapidamente que o protagonista de “Death Note” também é o seu vilão.
Mas até mesmo essa certeza é quebrada na metade do anime, quando Light Yagami renuncia a posse do Death Note e perde as memórias de Kira. Neste momento, ele até mesmo admite que as circunstâncias o apontariam como sendo o principal suspeito, mas ele “não é Kira”. No fim, ele acaba colaborando com as investigações e, aí, suas atitudes neste arco da história colocam em dúvida a verdadeira natureza de Light Yagami. Isto é: ele é essencialmente maligno ou foi corrompido pelo poder proporcionado pelo Death Note? E não seríamos todos nós assim em certa medida? Como já dito: este é um anime que levanta questões e não se preocupa tanto em responder.
De certa forma, o mesmo vale para L, o principal antagonista de “Death Note”. Ele afirma, em diversos momentos, que está ao lado da justiça e está atrás de Kira para fazer o que é certo. Contudo, ele mesmo admite ser uma pessoa infantil e que odeia perder. Além disso, seu temperamento obsessivo e entediado dá a entender que seu objetivo de prender Kira está muito mais associado ao seu próprio ego. Além disso, em diversos momentos, a impressão que fica é que L não deteve definitivamente Light Yagami pelo simples fato de que, se assim o fizesse, não teria “com quem brincar”. Ou seja: uma vez que Kira estivesse preso ou morto, ele voltaria a uma vida de tédio. Além disso, ele perderia também seu único “amigo”.
No final das contas, é impossível dizer com total certeza se Kira é completamente maligno e que L é completamente justo. É como aquela filosofia chinesa de que “há o bem, o mal, o mal que há no bem e o bem que há no mal”.

Um duelo de mentes
Em um anime shonen clássico, as cenas de ação costumam ser um dos pontos altos da trama. Contudo, em “Death Note”, não temos isso em nenhum momento, mas a catarse que ele evoca é semelhante ou até maior do que assistir a um duelo insano. Aqui, a grande batalha é travada entre duas grandes mentes geniais, sendo uma focada em estratégias e outra em deduções e lógica. A primeira é a de Light Yagami e a segunda de L.
E aqui talvez tenha a principal diferença entre ambos: um é um estrategista, o outro é um detetive. Qual é o mais inteligente? Ambos estão no mesmo nível dentro de suas próprias áreas de expertise. Estas características, narrativamente, se complementam e se encaixam, o que faz com que o jogo de gato e rato funcione tão bem e nos empolgue.
Dessa forma, a trama se desenvolve de uma forma que mescla, de forma brilhante, tanto às histórias clássicas de detetive – que nos empolga com as conclusões lógicas do detetive – quanto uma cena de ação de um shonen convencional. Este mérito, sem dúvida, é uma das chaves para o sucesso de “Death Note” e é o que costuma ficar na mente do público.

Em defesa de Near
Sei que direi algo polêmico aqui, mas a verdade é que Near, que é apresentado no arco final da história, é um personagem muito melhor do que se parece. Mas vamos por partes.
É importante entender que “Death Note” sofreu de uma maldição muito comum nos animes e mangás: um prolongamento artificial e desnecessário. O autor tinha uma ideia bem diferente para o desfecho da história e que faria muito mais sentido, colocando L para dar a cartada final em Kira utilizando as próprias regras do caderno contra ele mesmo. Contudo, os editores da revista, ao saberem que o final estaria muito mais próximo do que eles gostariam, obrigaram que tivessem mais capítulos. Dessa forma, para manter a coerência, foi necessário que L morresse e seus discípulos continuassem seu trabalho.
Observando esse contexto, faz bastante sentido a existência tanto de Near quanto de Mello, uma vez que eles representam dois lados de L: a razão pura e fria e as emoções egocêntricas.
Por mais que seja compreensível o fato de que muitos torcem o nariz para Near, soando quase como um “L do Paraguai”, ele é um personagem que possui, sim, seu valor. Apesar de ele mesmo admitir que nunca seria tão inteligente quanto seu mentor, ele possui algo que em muitos momentos dá uma vantagem em relação ao L: sua frieza. Evidentemente que, em muitos casos, ter um mínimo de empatia pelos outros é muito mais sábio do que a lógica pura e simples. Mas no contexto da investigação, e contra o inimigo que estavam enfrentando, isso se fazia necessário. Near estava disposto a arriscar seus aliados visando o resultado final. Aliás, ouso dizer que pelo próprio fato de Near não ser um personagem emotivo, sua “missão” foi cumprida com maior maestria.
É evidente que, no contexto da investigação, Near pegou a “cama arrumada” na hora de começar a trabalhar. Contudo, seu poder de dedução e capacidade de sintetizar informações não fica tão atrás do de L. Além disso, mesmo que tenha contado também com a ajuda de Mello, seu rival, em duas ocasiões cruciais da investigação, talvez outro personagem menos qualificado não tivesse a mesma capacidade de utilizar estas informações.
Outro fator que contribui para que Near seja menos apreciado do que L é o fato de que a história foi, artificialmente, esticada neste ponto. Desta forma, é nítido o quanto o ritmo e a qualidade decaíram. Além disso, este último arco foi feito quase que unicamente para que Kira fosse pego, ao contrário do que tinha se visto até então. Então, fica difícil gostar de Near dentro de todo esse contexto. Mas o personagem, em si, não é ruim e possui diversos méritos que até mesmo realçam as qualidades e defeitos de L.
A ironia da escolha de Mikami como Kira substituto
Em dado momento do último arco de “Death Note”, Light Yagami se encontra em uma situação que ele não pode mais matar ninguém usando o caderno, mas também não pode comandar que Misa Amane, sua esposa, o faça. Porém, as mortes precisavam continuar de alguma forma. Assim, foi escolhido um “Kira Substituto” e o eleito foi Teru Mikami. Segundo a própria lógica de Light Yagami, era necessário que fosse alguém que pudesse agir como ele agiria com certa independência, uma vez que não poderiam entrar em contato. Em resumo: ele queria quase um “clone” seu.
Após isso, em vários momentos, Mikami agiu e fez coisas sem o comando de Light, mas que seria a forma como ele mesmo gostaria que ele agisse. Não são raros os momentos que foram tecidos elogios a Mikami por conta disso. Contudo, de uma forma irônica, essas semelhanças tão grandes entre Light e Mikami foram justamente a falha no plano para derrotar Near. Quando Kiyomi Takada foi sequestrada por Mello, Light percebeu que ela precisaria morrer após matar seu sequestrador. Mas o próprio Mikami pensou no mesmo e decidiu ir até o banco para pegar seu caderno. Essa atitude expôs o fato de que o caderno na casa de Mikami ser falso e revelando, por consequência, todo o plano de Kira para matar Near, o que possibilitou uma contra estratégia.
É irônico pensar que a escolha de Mikami como Kira substituto foi feita por Light pensando em alguém que fosse quase igual a si mesmo. Dessa forma, Light morreu mordendo a língua por todos os elogios que fez a Mikami por agir da forma como gostaria de agir – em outras palavras, como ele mesmo teria agido.

Uma continuação pouco conhecida
Sim, existe uma continuação. Essa história faz parte do “Death Note: One-Shot Special” de 2020, também chamado de “Death Note: The a-Kira Story”. Na trama, Ryuk, o shinigami, retorna ao mundo humano anos após a morte de Light Yagami e entrega o Death Note a Minoru Tanaka, um estudante extremamente inteligente. Em vez de usar o caderno para eliminar criminosos como Light fez, Minoru decide vendê-lo ao maior lance, chamando a atenção do mundo e até mesmo do governo dos Estados Unidos. Sua identidade é protegida durante todo o processo, e ele ganha fama como “a-Kira” (um trocadilho com “Akira” e “A Killer”). No entanto, suas ações levam a uma nova investigação conduzida por Near, sucessor de L, e resultam em um desfecho inesperado devido a uma nova regra imposta pelos shinigamis.
Esse one-shot foi bem recebido pelos fãs, pois apresenta uma abordagem diferente do original, explorando novas formas de usar o Death Note. Ele mantém o tom estratégico e crítico da série, ao mesmo tempo em que mostra como o mundo evoluiu após os eventos da história principal.