Rambo não era herói ou vilão, mas sim vítima

Desde criança, sempre tive carinho pelo personagem Rambo, pois assistia aos filmes com meu pai nos fins de semana. Até mesmo o quarto longa, que era considerado o pior (até o lançamento do quinto), me parecia divertido. Contudo, por algum motivo, só fui assistir ao primeiro filme já na pré-adolescência – jurando que já o havia visto naquelas maratonas de infância. Quando finalmente o assisti, algo me incomodou, como se eu tivesse entendido errado a ideia do personagem ou se alguém tivesse me enganado. Algum tempo depois, descobri que o primeiro filme era baseado no livro de estreia de David Morrell, chamado “First Blood“.

Em determinado momento, procurei a obra para comprar, mas não encontrei nenhuma edição brasileira – até existiu uma na década de 1970, mas estava esgotada. Cogitei encomendar um exemplar no idioma original, mas como não era uma leitura prioritária para mim, adiei essa decisão. Até que, por acaso, minhas sugestões na Amazon indicaram que havia sido lançada uma edição brasileira em março de 2025 pela editora Pipoca e Nanquim, intitulada “Rambo: First Blood“. Encomendei um exemplar e…

Bom, se eu já suspeitava que tinha uma visão equivocada de Rambo após assistir ao primeiro filme, ler o material original não só reforçou essa convicção como também foi um verdadeiro soco no estômago. A cada página que virava, mais pena eu sentia do personagem e mais incomodado ficava. Em resumo, a obra joga sal em uma ferida que frequentemente é reaberta nos Estados Unidos: o descaso com seus heróis de guerra. E Rambo é a personificação ficcional (ou não) disso. Mas vamos por partes.

Contexto

David Morrell é um escritor canadense conhecido por seu impacto na literatura de ação e suspense. Nascido em 1943, ele ganhou notoriedade com seu romance de estreia, “First Blood“, publicado em 1972. A obra apresentou ao mundo o personagem Rambo, um veterano da Guerra do Vietnã que, ao retornar aos Estados Unidos, enfrenta perseguição por parte da polícia de uma pequena cidade. Morrell é frequentemente citado como um dos grandes nomes da literatura de ação moderna. Seu estilo direto e envolvente ajudou a redefinir o gênero, influenciando escritores e roteiristas ao longo das décadas.

First Blood” se tornou um marco no gênero thriller e foi adaptado para o cinema em 1982, estrelado por Sylvester Stallone. Embora o filme tenha mantido a essência do livro, houve mudanças significativas no enredo e na caracterização de Rambo – a começar pelo fato de que, nos filmes, ele é conhecido como John Rambo, enquanto no livro é apenas Rambo.

Na versão cinematográfica, Rambo é retratado de forma mais heroica e sobrevive no final, o que possibilitou a criação de uma franquia com várias sequências. O livro estabeleceu a base para um personagem icônico e um dos mais reconhecíveis do cinema de ação. O autor continuou escrevendo ao longo dos anos, publicando diversos romances de suspense e espionagem. Além disso, colaborou com histórias relacionadas ao universo de Rambo, incluindo novelizações e artigos sobre o impacto do personagem na sociedade.

Um prefácio desnecessário, mas compreensível

Nada mais justo que comecemos esse comentário do “começo”. O irônico deste início é que ele só existiu devido aos desdobramentos posteriores a publicação do livro. Aqui me refiro ao prefácio da mais recente edição brasileira, que foi escrito pelo próprio David Morrell na década de 1990. E preciso ser honesto: minha leitura teria sido muito melhor se tivesse pulado esta parte do texto, uma vez que ela acabou sendo parcialmente contaminada.

Para ser bem direto, este prefácio foi escrito em um claro objetivo de tentar “devolver a dignidade” do material original. Como a franquia de filmes Rambo estava em alta, e o cinema tende a trazer a “versão verdadeira” aos olhos do público, Morrell provavelmente estava incomodado com o fato de sua criação ter se tornado algo bem diferente do que pretendia. Mesmo que ele tente suavizar seu discurso com alegorias, como “um filho que cresceu e tem vontade própria”, é visível seu incômodo. E, na verdade, isso é totalmente compreensível. Como também sou escritor, me sentiria da mesma forma se estivesse na pele dele.

No entanto, Morrell também parece ser um homem minimamente sensato em não “cuspir no prato que comeu”. Isto é: mesmo que seu prefácio deixe transparecer seus sentimentos com relação a visão que as pessoas têm de Rambo, as altas somas de dinheiro que seu trabalho lhe rendeu possivelmente seguraram sua pena em muitos momentos. Afinal de contas, se suas palavras fossem muito duras neste sentido, ele seria taxado de ingrato ou antipático e não era essa sua vontade. Ser um sucesso estrondoso em um romance de estreia é façanha que raríssimos escritores conseguem.

Apesar disso tudo, o prefácio traz algumas informações interessantes sobre o processo criativo de Morrell, como por exemplo de onde ele tirou o nome “Rambo” – que teve inspiração no nome francês Rimbaud. Porém, ele peca ao entregar detalhes da trama que seriam melhores se o leitor descobrisse por si mesmo. E isso que acaba “contaminando” a leitura, uma vez que descobrimos “como” o autor gostaria que todos lessem seu trabalho – como se não confiasse mais no próprio trabalho de escritor para deixar isso transparecer no texto. Até o momento, não li outros trabalhos dele, mas me pareceu ser um homem com tendências auto expositivas e a própria forma como ele conduz algumas partes do livro corroboram com isso. Além do próprio prefácio, é claro.

Diversos tons de Kafka

Caso fosse necessário definir Rambo em uma única palavra, muito provavelmente escolheria “kafkiano”. É natural que outras pessoas discordem do meu ponto de vista, o que é compreensível, mas é impossível não perceber as influencias de Kafka na construção da narrativa de Morrell. E explico: “Rambo: First Blood” é um livro que usa o absurdo para falar de um problema social bem latente. Estes mesmos absurdos que lemos nos capítulos da obra talvez não tivessem sido tão evidentes em 1972, mas para leitores atuais são completamente irreais. Vamos a alguns exemplos.

Rambo é um ex-soldado da Guerra do Vietnã, com transtorno de estresse pós-traumático que não consegue mais se encaixar na sociedade. Portanto, virou uma espécie de andarilho pelas estradas dos Estados Unidos, dormindo em seu saco de dormir e comendo qualquer coisa que puder encontrar em restaurantes de beira de estrada. Sua aparência é selvagem e maltratada, com cabelos e barba compridos – típicos de hippies da época – e isso tudo foi a causa das inúmeras tragédias e mortes dos capítulos seguintes.

Will Teasle, o xerife da cidade que Rambo gostaria de passar, não permite que o mesmo coloque os pés no local quando o encontra vagando na estrada. Rambo desobedece diversas vezes até que, em dado momento, consegue entrar na cidade e comer dois hambúrgueres em uma lanchonete local. E de lá foi levado para a delegacia, onde iria passar um tempo preso e ainda precisaria cortar o cabelo e se barbear. Neste momento, mesmo tentando convencer a si mesmo de que “poderia ter evitado tudo aquilo”, Rambo se descontrola ao tentarem aproximar uma navalhada de seu rosto e seus instintos de combate vêm à tona. Nu, Rambo se livra dos policiais que estavam o segurando no banheiro, toma a navalha e eviscera um deles em sua fuga. Ainda despido, ele consegue dar um jeito de fugir para fora da delegacia, rouba uma moto e foge para as montanhas. Em dado momento da primeira noite, ele chantageia uma família produtora ilegal de bebida alcoólica para que o dessem roupas e um rifle. Assim, toda a carnificina começa. Durante sua fuga, Rambo é caçado e mata diversos de seus perseguidores no caminho, mostrando tudo que a guerra lhe ensinou.

Consegue entender quanto tudo isso é absurdo, mas que transparece uma mensagem profunda por detrás? E digo mais: essa situação de Rambo, apesar de extrema e ficcional, poderia muito bem acontecer com os veteranos de guerra. Episódios parecidos aconteceram já, inclusive.

Rambo foi convocado para lutar uma guerra que não tinha nada a ver, chegando até mesmo a ser capturado, torturado e escravizado pelo inimigo antes de conseguir escapar. Quando volta para seu país, ele é deixado a própria sorte, inclusive com a própria população o desprezando por achar que ele é um “assassino de crianças”. Aliás, isso aconteceu na vida real com os ex-soldados, uma vez que a Guerra do Vietnã foi transmitida na televisão e deu uma noção bem direta dos horrores de um conflito para o público em geral. Essa situação fez com que o povo norte-americano pressionasse o governo a retirar as tropas, o que acabou culminando na derrota que é amarga para os Estados Unidos até hoje.

No fim, ninguém se importava verdadeiramente com Rambo: ele era um jovem ex-soldado traumatizado, de aparência selvagem e que não conseguia mais se encaixar na sociedade muito porque a própria sociedade o desprezava. Assim, mesmo tendo sofrido horrores, é quase como se ele quisesse voltar para a guerra, pois a guerra era a única coisa que havia restado para ele. Por isso que, inconscientemente, ao invés de aceitar o absurdo de ser destratado apenas por querer passar por uma cidade e comer um lanche, ele resolveu revidar – e com muita força.

No primeiro filme, apenas uma morte foi registrada e que foi muito mais acidental do que causada. Já no livro, uma verdadeira carnificina acontece: Rambo não tem o menor pudor de mostrar o quão bom combatente é. Contudo, não espere ler sequências de ação de tirar o fôlego, pois aqui o combate se aproxima mais do que é uma guerra de verdade. Morrell foi mestre em construir sequências violentas que parecem muito mais cenas de uma história de terror. E, ao mesmo tempo, tudo aquilo que estamos acompanhando é muito triste, uma vez que são as consequências de um problema que a própria sociedade norte-americana criou para si mesma. Isto é: queriam que a guerra acabasse e ficasse longe dos Estados Unidos, mas ironicamente esse movimento trouxe a guerra para seu quintal de forma quase literal. E Rambo é apenas o resultado disso tudo, sendo a maior das vítimas.

Por fim, tanto Rambo quanto Teasle acabam morrendo. O xerife cai devido aos ferimentos causados pelo “garoto”, em um final onde parte da cidade explode e é incendiada devido às dinamites usadas por Rambo em pontos estratégicos. Já o próprio Rambo é abatido por um tiro de espingarda na cabeça, disparado por Trautman, um dos responsáveis pelo seu treinamento. Este gesto é muito simbólico, pois, os diretamente “envolvidos” no conflito acabam tendo o mesmo destino, enquanto que a peça “do sistema” segue de pé.

Se tudo isso que foi descrito até aqui não soa uma obra de alguém que foi influenciado por Kafka, não sei mais o que poderia ser. São situações absurdas e quase irreais que traduzem bem um problema social e existencial.

Uma história incrível, uma escrita inexperiente

Como se trata de um romance de estreia, é possível imaginar que a escrita de Morrell não era muito madura a esta altura de sua carreira. Pois é bem este o caso. Contudo, essa inexperiência não tira os méritos que o livro “Rambo: First Blood” possui.

É evidente que existem algumas partes que são bem confusas de serem acompanhadas se não estiver extremamente atento. Exemplo disso é quando os pensamentos e diálogos internos dos personagens são jogados sem qualquer sinalização, tendo que ser esperto no contexto para não se perder na leitura. Contudo, os conflitos internos que Rambo enfrenta ao perceber a situação que estava, eventualmente até mesmo pensando que exagerou em sua reação, são verossímeis para quem estaria nesta situação.

Além disso, existe uma pequena cena de diálogo entre Trautman e Teasle que serve para deixar “extremamente explícita” a mensagem do livro, de que Rambo é uma vítima dentro de todo o contexto que os Estados Unidos estavam vivendo na época. Tal momento é desnecessário e tira algumas nuances da leitura, mas é um detalhe que podemos relevar dentro de tudo que foi apresentado.

Nenhum destes pequenos problemas tira os méritos da obra. Aliás, chega até mesmo ser charmoso e gratificante ler um romance de formação de um autor e perceber que era um artista quase destinado a criar algo tão grandioso.

Primeiro Sangue?

Consigo entender o tamanho da dor de cabeça que os editores da tradução brasileira tiveram para decidir o nome da obra em terras tupiniquins. Seria inviável retirar o nome de Rambo do título sem prejudicar consideravelmente as vendas. Porém, o termo “First Blood”, caso traduzido literalmente ao pé da letra para o português (Primeiro Sangue) soaria esquisito. Não encontrando qualquer alternativa minimamente aceitável para o problema, talvez a solução mais simples tenha sido a adotada: “Rambo: First Blood”. Entendo que não deve ter sido a decisão mais fácil do mundo, do ponto de vista editorial.

A qualidade da edição está excelente, com raríssimos erros de digitação ou revisão. Além disso, o livro vem acompanhado de um marcador de página em formato da faca tática clássica de Rambo. Realmente, este foi um grande presente para os leitores brasileiros e a editora Pipoca e Nanquim está de parabéns pela entrega.

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