Nos mais de 500 anos de história do Brasil, já tivemos muitas situações polêmicas de maior ou menor relevância. Algumas delas até mesmo moldaram os rumos históricos, como a série de controvérsias que acarretaram na morte de Getúlio Vargas.
Outras envolveram coisas banais, mas que causaram uma repercussão muito maior do que a própria pauta que as originou. Na nossa história recente, tivemos um exemplo disso com uma simples brincadeira entre os mais jovens: o baralho de Yu-Gi-Oh!.
Este caso teve diversas reviravoltas e controvérsias ao longo dos últimos anos, tendo seu desfecho apenas “concluído” no final de 2024. Assim, vamos fazer uma linha do tempo dos acontecimentos com uma retrospectiva do que foi este “quase” caso de “histeria coletiva” no Brasil.
Contexto
“Yu-Gi-Oh!” é uma franquia japonesa criada por Kazuki Takahashi, que surgiu inicialmente como um mangá em 1996 e rapidamente se expandiu para o universo dos animes, jogos eletrônicos e, principalmente, para o popular jogo de cartas colecionáveis. A narrativa gira em torno de duelos estratégicos, onde os personagens utilizam baralhos repletos de monstros, feitiços e armadilhas para competir em partidas intensas, conquistando uma legião de fãs ao redor do mundo.
O jogo de cartas de Yu-Gi-Oh! destaca-se pela complexidade de suas mecânicas, exigindo dos jogadores habilidades de construção de baralhos e estratégias bem elaboradas. Com uma enorme variedade de cartas e arquétipos, cada duelista pode personalizar seu “deck” de acordo com seu estilo de jogo, explorando sinergias entre diferentes tipos de monstros e táticas para surpreender seus oponentes. Essa constante evolução do jogo, com novas regras e cartas sendo introduzidas, mantém o desafio e a competitividade vivos ao longo dos anos.
No Brasil, a franquia ganhou notoriedade com a exibição do anime “Yu-Gi-Oh! Duel Monsters” no início dos anos 2000, que cativou crianças e adolescentes e despertou o interesse pelo jogo de cartas. Essa popularidade impulsionou a abertura de lojas especializadas e a realização de torneios locais, criando uma comunidade de duelistas apaixonados que se reúne em eventos e competições oficiais, fortalecendo o cenário competitivo nacional e até mesmo internacional.
Atualmente, Yu-Gi-Oh! continua sendo um fenômeno cultural no Brasil, com uma base de fãs sólida e ativa. O jogo de cartas mantém seu apelo através de constantes atualizações e novos lançamentos, enquanto o anime e outras mídias ajudam a atrair novas gerações de jogadores.
Mas, nem tudo foram flores na trajetória da franquia e do jogo em terras tupiniquins…
“Baralho do capeta”
A franquia “Yu-Gi-Oh!” enfrentou diversas polêmicas no Brasil desde sua introdução nos anos 2000, quando o anime e o jogo de cartas colecionáveis começaram a ganhar popularidade. Críticas surgiram em relação ao conteúdo do anime, que alguns consideravam “inapropriado para o público infantil”, devido às cenas de duelos intensos, referências místicas e o uso de cartas com ilustrações consideradas violentas ou assustadoras. Esse contexto gerou debates entre pais, educadores e autoridades, que questionavam se a franquia poderia ter uma influência negativa sobre os jovens.
Além das preocupações com o conteúdo do anime, o jogo de cartas também se envolveu em controvérsias. Houveram reclamações sobre a comercialização e distribuição de cartas raras, o que levava a práticas abusivas e especulativas em torneios locais. Em alguns casos, disputas acirradas entre colecionadores e a falta de regulação nos eventos oficiais geravam conflitos e até acusações de manipulação de regras, o que colocava em xeque a integridade das competições. Essa combinação de críticas e disputas ajudou a moldar uma imagem ambígua da franquia, que, ao mesmo tempo em que cativava uma legião de fãs, também despertava controvérsia no meio cultural e esportivo.
Porém, estas foram as menores polêmicas que Yu-Gi-Oh! enfrentou no Brasil…
Diversos programas e matérias sensacionalistas exploravam a ideia de que este seria um “baralho do capeta”, afirmando que as cartas continham símbolos satânicos e que os duelos, com suas reviravoltas e estratégias complexas, poderiam ter uma influência maléfica sobre as crianças. Esse discurso alarmista, aliado a uma linguagem exagerada, alimentou o pânico moral em alguns setores da sociedade e gerou debates acalorados sobre os possíveis riscos culturais e espirituais da franquia.
Em diversos telejornais e programas de debate, especialistas e líderes comunitários se posicionavam contra o que chamavam de “baralho do capeta”, argumentando que a franquia poderia estimular comportamentos desviantes ou até mesmo promover uma espécie de culto às forças do mal. Em seu programa “Boa Noite Brasil”, da Rede Bandeirantes, o apresentador Gilberto Barros abordou de forma sensacionalista a polêmica do “baralho do capeta”. Este foi, de longe, o maior estardalhaço midiático feito entorno do jogo.
Muitos pais e responsáveis que acompanharam os programas – que foi ao ar em junho de 2003 – proibiram seus filhos de continuarem brincando com as cartas. Existem diversos relatos, inclusive, de adultos colocando os baralhos fora ou até mesmo ateando fogo às cartas. E tudo isso após o sensacionalismo promovido pelo apresentador.
Mídia perdida não tão perdida assim
Nos últimos anos, a busca por gravações perdidas do programa “Boa Noite Brasil”, apresentado por Gilberto Barros, ganhou destaque entre os fãs de lost media e entusiastas da TV brasileira. A ausência de registros oficiais e a dificuldade de encontrar as gravações originais transformaram esses episódios em um verdadeiro objeto de desejo para colecionadores e pesquisadores da mídia, gerando um intenso trabalho colaborativo online para recuperar esse conteúdo histórico.
A comunidade de lost media se mobilizou em fóruns, redes sociais e canais especializados no YouTube para vasculhar arquivos, rastrear menções e identificar trechos dos episódios. Esses esforços, frequentemente organizados em subreddits e grupos temáticos, durante anos não renderam qualquer resultado. Inclusive, um grupo chegou a fazer contato com a Rede Bandeirantes, solicitando as gravações do programa caso elas existissem. A emissora supostamente teria pedido um valor de R$ 100 mil para liberar as gravações, mas a comunidade de lost media desconfiou, pensando se tratar de um golpe.
Diversas recriações em animação foram feitas durante os anos que as buscas foram feitas, buscando imaginar como os episódios teriam transcorrido. Contudo, as buscas tiveram uma reviravolta anticlimática em novembro de 2024, quando um membro da comunidade de lost media brasileira encontrou o programa no YouTube, que estava na plataforma desde meados de 2010. Ou seja: as gravações estavam disponíveis ao público durante mais de uma década sem ninguém ter encontrado.
A teoria mais aceita é que a dificuldade de encontrar o vídeo se deu por conta dos títulos (“Debate Card Introdução” e “Debate Card 1”), que acabaram tornando as buscas difíceis para que o algoritmo encontrasse ou recomendasse. Além disso, também é debatida possibilidade de o canal que subiu os vídeos, chamado de CTERHEMA, ter privado os vídeos durante todos estes anos, mas só mais recentemente removeu tal restrição. De qualquer forma, atualmente a polêmica envolvendo tanto o “baralho do capeta” quanto a lost media foram resolvidas.