As pessoas não sabem mais interpretar texto e a culpa é dos memes

Trabalho com jornalismo digital há alguns anos e essa experiência me trouxe algumas relevações sobre como as pessoas são quando estão “em um grupo anônimo”. Não vou entrar no mérito das diversas infelicidades que muita gente reunida pode fazer, mas um em particular me assusta: ninguém mais sabe interpretar um texto. E aqui não me refiro à preguiça coletiva de ler uma mera legenda de um card informativo – isso é chover no molhado –, mas sim que quase ninguém consegue compreender o que um mero título de uma matéria quer dizer. E as já ditas legendas de antes? Menos ainda.

Normalmente não me contento em apenas reclamar de algo: eu quero entender as coisas mais a fundo e, se possível, achar uma solução. Porém, em meu ofício, minha única alternativa é escrever matérias e títulos de forma que até mesmo o maior de todos os imbecis possa entender. A escolha da foto também é de extrema importância neste contexto, uma vez que uma opção inadequada pode levar a um mal entendido – que muitas das vezes nem é culpa do jornalista, mas sim da deficiência de interpretação do público. Estes paliativos nunca foram o suficiente para mim, então em algum momento me peguei pesquisando sobre os motivos dessa situação.

No início de minha busca, achei apenas as evidências mais “óbvias”: excesso de redes sociais, ausência de leitura mais aprofundada, etc. Nada disso realmente me convenceu, uma vez que algumas coisas não faziam muito sentido. Isto é: tirando os vídeos curtos, o grosso do conteúdo digital ainda assim é composto por textos em maior ou menor medida. Aliás, nunca antes na história as pessoas estiveram tão expostas a texto escrito como agora. Enfim, o fato é o insight da resposta veio após fazer algo que todo mundo faz centenas de vezes por dia: ver memes.

Digo com alguma segurança que o problema central da falta de interpretação de texto das pessoas são os memes (principalmente os “estáticos”) e a cultura que ele nos trouxe. E eu explico. Mas vamos aos poucos – e admito que chega a ser irônico escrever um texto grande sobre um tema complexo, mas só assim para que as coisas consigam se explicar.

Lembro bem que o que me fez me dar conta deste problema era um carrossel de Instagram contendo vários memes. Até que, não sei porque, eu comecei a associar aquilo tudo com uma parte importante do meu próprio trabalho como jornalista. Isto é: selecionar a imagem mais adequada e escrever o título que melhor condense toda a informação. Ah, e eu preciso lembrar sempre que a maioria esmagadora das pessoas lerá apenas o título, então é importante resumir um fato (muitas vezes) gigantesco em até 70 caracteres – alguns pedem até para reduzir para meros 50 caracteres. Dessa forma, eu comecei a pensar que meu trabalho não era muito diferente de criar um “meme”. E quando me dei conta disso, quase todas as outras respostas começaram a brotar por consequência.

Em essência, atualmente, um meme é um tipo de conteúdo que vem como uma espécie de “pílula” de entretenimento que mescla texto e imagem, um complementando o outro. Porém, em sua essência, esse conteúdo vem “empacotado” de uma forma que não requira qualquer aprofundamento – essa imagem é compartilhada, viralizada, mas cinco minutos depois ela é esquecida.

E não quero ser chato aqui: eu gosto muito de uma zoeira e sei o quanto o humor é importante para mantermos um mínimo de sanidade mental neste mundo enlouquecido. Porém, quando este tipo de formato de conteúdo começa a ser a espinha-dorsal de uma cultura, daí sim nós temos um grande problema. E eu, pessoalmente, vejo eles todos os dias.

Já perdi as contas de quantas vezes uma matéria escrita ou editada por mim gerou algum mal entendido entre as pessoas. Os comentários nas publicações evidenciam isso. Imediatamente, o instinto do jornalista é revisar o conteúdo para ver se algum erro foi cometido. Quando nada foi constatado, é cogitada a possibilidade de alterar algum título, parágrafo ou todo o conteúdo para que tudo seja melhor compreendido. E não são raras as vezes que isso é feito, mas (aí sim) são raras as vezes que o problema é resolvido. Geralmente, as pessoas apenas desistem de tentar entender e passam para a próxima publicação.

(Por questões éticas, não irei dar exemplos para não criar qualquer indisposição, mas deixo a sugestão: entre nas redes sociais dos principais portais de notícias, leiam as matérias e depois acompanhem os comentários que essa realidade se revelará com clareza.)

“Será que eu sou um incompetente?”, eu penso nestas ocasiões. Mas, após muito ponderar e constatar que não há nada o que fazer para deixar aquela matéria ainda mais clara, apenas uma conclusão é tirada: qualquer fato de complexidade média ou alta é simplesmente inconcebível para o público comum. Eu tinha feito, sim, um bom trabalho de apuração, redação e edição. O fato é que as pessoas não estão mais tendo a capacidade de interpretar.

Aliás, lembro bem de uma vez, anos atrás, quando um editor de distribuição de um veículo que trabalhei estava com essa angústia. “Tem um monte de matéria importante, mas se chamar elas ninguém vai clicar para ler”, ele lamentou. No fim, a coordenadora disse para ele misturar essas com alguns besteiróis de famosos – ninguém clicou no que era importante.

Pois bem: essa situação faz parte da cultura dos memes, uma vez que as pessoas não sabem mais – ou talvez nunca souberam – o que é entretenimento e o que é informação. A verdade é que as pessoas recebem uma notícia pelo seu feed das redes sociais e a consomem como se fosse mais um meme. Se não estiver “palatável” o suficiente, a culpa é do jornalista por N motivos. Matérias investigativas então, das quais um tema é altamente complexo de se entender? Simplesmente não vão mais ter espaço dentro deste contexto – aliás, jornalista investigativo é artigo de luxo hoje em dia.

Aonde vamos parar com isso? Eu tenho uma ideia.

Várias vezes, meus professores de faculdade repetiram uma máxima: “escreva partindo do pressuposto que o leitor é leigo e ignorante”. Alguns eram bem mais mal-educados nesta frase, mas deu para entender. Acredito que, caso algum dia eu vire professor de jornalismo, eu oriente meus alunos com a seguinte frase: “escreva matérias partindo do pressuposto que são memes para serem compartilhados e viralizados”. Caso alguém me pergunte como escrever seus textos, talvez o máximo que poderei responder é: “escreva como a norma manda e reze para que uma vivalma tenha mais de dois neurônios para entender”.

Aliás, essa deficiência é transferida até mesmo para os gestores, uma vez que já vi vários deles “confundindo” matérias inteiras com os meros títulos das mesmas. Chega a ser tão assustador quanto deprimente.

E é isso mesmo. Eu não tenho qualquer ideia de como estimular as pessoas a lerem mais e consumirem um conteúdo de maior qualidade. Aliás, acredito que tais mídias vão se tornar cada vez mais nichadas e pertencentes a alguma elite, mas esta mesma me parece cada vez menos promissora. Minha única arma é esta que estou usando neste momento.

Ok, agora vamos ver o próximo meme. Ou notícia? Não sei mais dizer.

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