A Inquisição nos legou o sistema processual moderno

Diversas figuras e instituições foram injustiçadas ao longo da história. Contudo, dentre esta pletora de exemplos, facilmente podemos classificar a Igreja Católica como sendo a entidade com o maior número de injustiças contra ela. Porém, para um fiel, isto é esperado, uma vez que a Igreja é comparada com um simples barquinho navegando em um oceano traiçoeiro. E mesmo assim, ela se tornou a religião com o maior número de seguidores no mundo e persiste há quase 2 mil anos. Como próprio Jesus Cristo disse em parábola: é como a minúscula semente de mostarda que dá origem a uma árvore frondosa cujos pássaros procuram para se abrigar.

Porém, de todas as injustiças acusadas contra a Igreja, uma delas se destaca há séculos: os “horrores” da Inquisição. Mesmo que todos esses mitos já tenham sido desmentidos várias vezes por diversos historiadores (muitos sequer sendo católicos), a ideia que resiste é essa. Além disso, algumas obras da cultura popular costumam reforçar tal embuste, como “O Nome da Rosa”, “Castlevania”, dentre outras.

Dessa forma, para resumir: sim, alguns hereges foram para a fogueira e outros foram torturados. Mas esses números eram tão pequenos, em contextos tão específicos, que quando colocados em comparação com os números de processos – porque existe registro deles –, dá até para dizer que eram uma exceção levada às últimas consequências. E todas essas metodologias de investigação, ouvir testemunhas e avaliar evidências que a Inquisição realizava foi o principal alicerce para que se constituísse o sistema processual moderno dentro do Judiciário. Antes, nada disso era feito e muitas pessoas eram simplesmente condenadas à pena capital pelos regentes locais. Até mesmo o nome “penitenciária” vem de “penitência”, que se origina deste contexto. Mas vamos por partes.

A heresia cátara

Não faria o menor sentido começar a falar sobre a Inquisição sem falar de um dos movimentos que serviu de pontapé inicial para a coisa toda. Também conhecida como catarismo ou heresia albigense, a heresia cátara foi um movimento religioso que floresceu no sul da França, especialmente na região do Languedoc, entre os séculos XII e XIV. Inspirados por doutrinas gnósticas e maniqueístas, os cátaros acreditavam na existência de dois princípios opostos: um Deus bom, criador do mundo espiritual, e um deus mau, responsável pelo mundo material.

Essa visão dualista levava à rejeição dos sacramentos da Igreja Católica, do clero e da autoridade papal. Os cátaros pregavam a “pureza espiritual” e praticavam o ascetismo, com destaque para os “perfeitos”, que levavam vidas de renúncia e celibato – prática não muito distante do que monges budistas e hinduístas praticam.

Porém, essa visão dualista os de “toda matéria é má” os fazia detestar qualquer coisa viva. Eles desprezavam a sociedade, diziam que a reprodução era perpetuar o poder do “deus mau do mundo material”, então costumavam até mesmo a matar mulheres grávidas, invadiam casas e assassinavam pessoas. Inclusive, foi neste contexto que São Francisco de Assis começou a elaborar a tese das “criaturas irmãs”, que pregava o respeito pelos animais, pois, estes também foram criados por Deus. Em outras palavras, se o mundo físico e material também era obra do Criador, ele também haveria de ser bom.

A Inquisição

A rápida expansão do catarismo levaram o papa Inocêncio III a convocar o que ficou conhecido como a Cruzada Albigense em 1209. Mesmo após o fim oficial da cruzada em 1229, os cátaros remanescentes continuaram a ser perseguidos. Para consolidar o combate à heresia, a Igreja instituiu a Inquisição.

E aqui começam a entrar algumas questões que provavelmente não se costuma falar em muitos lugares.

A Inquisição, frequentemente retratada como um período de intensa perseguição e violência, é, na realidade, um fenômeno histórico mais complexo do que a cultura popular sugere. Embora existam registros de execuções e torturas, estudos recentes indicam que tais práticas eram menos frequentes do que se imagina. Por exemplo, análises de registros inquisitoriais revelam que menos de 2% dos processos resultavam em execução, contrariando a ideia de que a fogueira era um destino comum para os acusados de heresia.

A tortura, embora autorizada em certos contextos, também era aplicada com parcimônia. A Igreja Católica, consciente das limitações morais e práticas desse método, estabeleceu restrições claras ao seu uso. A bula papal Ad extirpanda, de 1252, permitia a tortura apenas sob condições específicas, proibindo práticas que levassem à morte ou mutilação, e exigia que os inquisidores obtivessem confissões voluntárias para que fossem consideradas válidas.

Além disso, muitos dos instrumentos de tortura frequentemente associados à Inquisição, como a “dama de ferro” ou a “pera oral”, na verdade, surgiram em períodos posteriores ou foram utilizados por autoridades seculares, não eclesiásticas. A confusão entre as práticas da Inquisição e as de tribunais civis contribuiu para a amplificação de mitos sobre a brutalidade inquisitorial.

É importante também destacar que a Inquisição não atuava isoladamente, mas em colaboração com as autoridades seculares. Em muitos casos, as penas mais severas, incluindo execuções, eram executadas pelo braço secular, após a condenação e entrega do acusado pela Igreja. Essa separação de funções refletia a tentativa da Igreja de manter uma postura de misericórdia, mesmo ao lidar com casos considerados graves.

Vale destacar que, durante os julgamentos da Inquisição, muitos acusados de heresia demonstravam notável habilidade em manipular o sistema jurídico da época. Utilizavam estratégias como contradições calculadas, simulações de arrependimento e aproveitamento de lacunas nos procedimentos inquisitoriais para evitar condenações severas. Essas táticas, comparáveis às de advogados astutos, permitiam que grande parte dos hereges escapassem das punições mais rigorosas. Além disso, a própria estrutura da Inquisição, com seus processos muitas vezes secretos e a ausência de direitos plenos de defesa, criava um ambiente propício para tais manobras. Esse comportamento evidencia que, mesmo sob um sistema rígido e autoritário, os acusados buscavam formas de contornar as acusações. Em último caso, o acusado tinha direito de “apelar ao papa”, que era um artifício muito utilizado e que o inquisidor não poderia negar.

O estorvo de ser um inquisidor

O cargo de inquisidor, embora revestido de autoridade eclesiástica, era frequentemente visto como um encargo indesejado. As responsabilidades associadas eram extenuantes, envolvendo longas investigações, julgamentos complexos e a constante possibilidade de apelações ao papa, um direito garantido a todos os acusados. Essas apelações não apenas prolongavam os processos, mas também minavam a autoridade dos inquisidores locais, tornando seu trabalho ainda mais desafiador.

Além das dificuldades processuais, a Inquisição enfrentava sérios obstáculos de receita. Apesar de os governos seculares reconhecerem a utilidade da Inquisição para manter a ordem religiosa e social, raramente ofereciam apoio financeiro substancial. Consequentemente, os tribunais inquisitoriais operavam com recursos limitados, dependendo muitas vezes de doações ou da apropriação de bens dos condenados. Essa falta de financiamento adequado comprometia a eficácia das operações e aumentava a pressão sobre os inquisidores, que já lidavam com a complexidade dos casos e a resistência das autoridades locais em colaborar plenamente.

As torturas

Historiadores como Henry Kamen destacam que, apesar de sua existência, a tortura era utilizada apenas sob regulamentações específicas, visando evitar danos permanentes aos acusados. Além disso, reconhecia-se que confissões obtidas sob tortura poderiam ser motivadas mais pelo desejo de cessar o sofrimento do que pela revelação da verdade.

Em contraste, as autoridades civis frequentemente recorriam a métodos de tortura mais severos, especialmente em casos de crimes comuns ou questões políticas. Na Genebra calvinista do século XVI, por exemplo, a tortura era empregada como um ritual de purificação espiritual, visando não apenas a obtenção de confissões, mas também a reafirmação dos valores morais da comunidade. Métodos como o estrapade e a corde eram utilizados para extrair confissões de crimes como heresia, bruxaria e desvios sexuais. A severidade das punições refletia a rigidez moral imposta pelas autoridades reformadas, que buscavam manter a ordem e a pureza religiosa na sociedade.

Além disso, registros históricos indicam que, em alguns casos, até mesmo crianças foram submetidas a punições extremas por comportamentos considerados inaceitáveis. Na Genebra do período, há relatos de uma menina que foi decapitada por agredir seus pais, evidenciando a rigidez das normas sociais e a severidade das punições aplicadas. Esses episódios destacam que, embora a Inquisição Católica tenha sido responsável por práticas repressivas, outras instituições e movimentos religiosos da época também empregaram métodos rigorosos para impor sua visão de ordem e moralidade.

A origem do mito

A construção do mito da Inquisição começa já no século XVI, quando a Reforma Protestante buscou preencher lacunas na história da Igreja Católica e demonizar seus tribunais de heresia, retratando-os como exemplares de barbárie e tirania. Essa “Lenda Negra” ganhou força ao associar a Inquisição espanhola à perseguição em massa de protestantes, chegando-se a afirmar que centenas de milhares teriam sido torturados e mortos, embora evidências posteriores mostrem que o número real de execuções foi muito inferior ao propagado. Protestantes e rivais políticos da Espanha espalharam relatos fantásticos de friars cruéis e fogueiras intermináveis, usando folhetos e panfletos que se espalharam por toda a Europa, o que moldou a percepção popular de um “monstro” eclesiástico único e centralizado.

Mesmo católicos críticos apontavam dificuldades no controle papal sobre tribunais locais, mas isso foi convertido em narrativa de um sistema unificado e todo‑poderoso sob Roma. Com isto, o tribunal que havia surgido no século XII para garantir processos mais “justos” que o arbítrio secular passou a ser visto como símbolo de opressão religiosa.

No século XVIII, o Iluminismo intensificou a crítica à Inquisição, apresentando-a como antítese dos ideais de razão, liberdade e progresso. Montesquieu, em “O Espírito das Leis”, descreveu inquisidores como figuras cruéis e isoladas, usando o episódio de um judeu queimado em Lisboa para ilustrar o perigo do poder clerical descontrolado. Voltaire satirizou rituais de auto‑da‑fé em “Cândido“, transformando o horror inquisitorial em comédia ácida e disseminando essa imagem na cultura letrada. A “Enciclopédia” de Diderot e Jaucourt reproduziu essas críticas num artigo feroz contra a Inquisição espanhola, associando‑a ao atraso científico e ao despotismo monástico. Assim, o Iluminismo solidificou o “mito” ao contrastar o tribunal eclesiástico com seu próprio programa de reforma e tolerância, tornando‑o um ícone literário e político da tirania religiosa.

Nos séculos XIX e XX, com a abertura dos arquivos papais e espanhóis, historiadores revisaram drasticamente esses relatos, mostrando que a Inquisição foi menos monolítica, menos sangrenta e frequentemente limitada por regras jurídicas rigorosas. Muitas supostas “armas de tortura” atribuídas ao Santo Ofício surgiram apenas em épocas posteriores ou em contextos seculares, não eclesiásticos. Estudos atuais enfatizam que o tribunal operava dentro de estruturas colaborativas com o poder civil e que execuções representaram uma fração mínima dos processos. Além disso, a Inquisição foi usada como base para moldar o sistema processual que temos até hoje.

Ainda assim, a imagem da Inquisição como protótipo de crueldade permaneceu viva na arte, no cinema e na retórica política, alimentada pela persistência dos valores iluministas de liberdade e pelos discursos protestantes de heresia como extermínio religioso. Esse legado de propaganda mútua e crítica filosófica consolidou o mito que hoje conhecemos, embora a realidade histórica seja bem mais complexa.

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