O fungo que aleijou uma família inglesa

A história da medicina está repleta de relatos impressionantes. São diversas histórias de pacientes com condições peculiares, recuperações quase milagrosas e doenças estranhas que fogem bastante da compreensão dos especialistas. Até mesmo nos dias de hoje é possível colher relatos surpreendentes de médicos de longa data – caso tenha a oportunidade de conversar com um doutor, sugerimos perguntar sobre suas melhores histórias.

Porém, os registros médicos também estão cheios de histórias trágicas e angustiantes na qual ficamos com pena dos pacientes. Grande parte desses relatos são de uma época que a medicina ainda não era tão bem desenvolvida como hoje em dia. Portanto é de se esperar o pior destino possível. E esse foi o caso da família Downing e a amputação de suas pernas.

No ano de 1762, foi publicado na revista “Philosophical Transactions” o relato do médico Charlton Wollaston a respeito da história da família Downing, moradora da vila de Wattisham, na Inglaterra. A casa contava com um total de oito moradores, sendo o casal e seus seis filhos. Nenhum dos familiares apresentava qualquer problema de saúde e todos viviam de forma saudável e plena.

Contudo, isso iria mudar logo no início daquele ano.

Na manhã do dia 10 de janeiro, em um domingo, a filha mais velha do casal, que na época tinha 15 anos, começou a se queixar de uma dor forte na perna esquerda. Na noite daquele mesmo domingo, a filha de 10 anos também alegou estar com dor no mesmo local. No dia seguinte, outros membros da família passaram pelo mesmo problema e, na terça-feira daquela semana, apenas o pai ainda não tinha sido acometido pelo desconforto.

O doutor Wollaston visitou a casa da família naquela mesma semana e observou a progressão daquela moléstia. Ele relatou que, após cinco dias, as dores na perna de todos os familiares passaram a diminuir, mas os membros começaram a escurecer e apresentar sinais de gangrena. Assim, o médico decidiu que seria melhor amputar as pernas afetadas, que em alguns casos poderiam ser as duas. O cirurgião local não encontrou dificuldade na tarefa, pois até mesmo os ossos da família estavam debilitados. Além disso, neste meio tempo, o filho mais novo, de apenas quatro meses, acabou falecendo.

Apenas o pai da família Downing escapou ileso neste primeiro momento. Porém, ele apresentou sintomas de rigidez nas mãos. Esse problema também passou a ser apresentado por sua esposa após a amputação de seu pé, ao ponto de perder completamente os movimentos dos dedos.

Sentindo-se intrigado com a situação daquela família, o doutor Wollaston passou a fazer uma investigação para tentar descobrir a causa daquele problema. Até mesmo um sacerdote local se juntou na pesquisa, mas nenhum dos dois conseguiu descobrir nada em especial. Foram investigados os alimentos consumidos pela família e diversos utensílios domésticos. O Sr. Downing chegou a pensar que sua casa tinha sido alvo de bruxaria, mas o próprio reverendo o convenceu de que não poderia ser algo do tipo.

Apesar de não terem encontrado a resposta, o doutor Wollaston fez uma observação em suas anotações que passou despercebida.

De acordo com ele, a família havia feito pão com um trigo passado e que havia sido colhido em época chuvosa. Esse cereal havia sido armazenado no solo junto de outros que haviam apodrecido. Porém, o médico ressaltou que outras famílias da vila haviam se alimentado do mesmo trigo e não foram acometidas pela doença.

O editor da “Philosophical Transactions” se deu conta de que um médico francês havia feito uma descrição muito parecida em 1719. Naquele ano, em Orléans, cerca de 50 pessoas sofreram de gangrenas escuras nas pernas que acarretaram em amputações. A comunidade médica na época ficou dividida, mas eles suspeitavam de que a doença poderia ser causada por conta da má alimentação, em especial pela ingestão de alimentos com grandes quantidades de ergotina.

Eles estavam certos.

Ergotismo é uma doença que pode ser contraída ao se comer cereais infectados por um fungo parasita chamado Claviceps purpurea, também conhecido como esporão-do-centeio. O fungo Claviceps purpurea sintetiza uma série de químicos que podem afetar o sistema nervoso central e a constrição dos vasos sanguíneos do corpo humano.

Assim, os sintomas do ergotismo podem incluir depressão, confusão mental, hipertensão e problemas vasculares. Como as áreas com menor vascularização do corpo humano são as mãos e os pés, por consequência, são as mais prováveis de serem afetadas por uma eventual gangrena devido a constrição dos vasos sanguíneos – esse foi o caso da família Downing.

Os químicos liberados por este fungo são resistentes a altas temperaturas, portanto ainda podem ser transformados em farinha e assados em pães que mesmo assim são nocivos. Esse fungo pode ser transmitido também da mãe para o filho através do aleitamento materno – o que explica a morte do filho mais novo dos Downing.

Em outubro de 1762, o doutor Wollaston fez uma nova visita à família e descobriu que todos estavam relativamente bem. Contudo, a filha mais velha havia falecido desde a última vez que esteve no local. Além disso, o pai da família também havia perdido uma das pernas devido ao envenenamento por ergotina. Não se tem maiores registros do destino da família após essa última visita, uma vez que o médico morreu pouco tempo depois devido a uma causa não documentada.  Porém, é de se imaginar que todos precisaram enfrentar grandes desafios devido ao fato de terem sido amputados e com limitações nos movimentos das mãos.

Ao longo da história, o ergotismo aconteceu em forma de surtos principalmente em pequenas comunidades cuja base alimentar eram os grãos. Atualmente, os casos de ergotismo são raros e quando acontecem existem tratamentos médicos mais eficazes para evitar o pior. Também contamos com práticas avançadas de limpeza e preparo de terra na hora de cultivar os grãos.

Uma curiosidade: o fungo também é conhecido por ser alucinógeno e ser uma das matérias-primas para a produção de drogas de uso medicinal e LSD.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *