Bukowski tem menos baixaria do que em e-books da Amazon

Não lembro quando ouvi falar a respeito de Charles Bukowski. Talvez tenha sido no ensino médio, na faculdade ou em alguma publicação nas redes sociais. Honestamente, sua fama (ou infâmia) nunca me disse qualquer coisa. E isso não é exclusividade para com o velhinho safado: para mim, eu só vou conseguir tecer qualquer comentário a respeito de uma obra ou autor após ter lido algo. Pode parecer meio óbvia essa postura, mas acredite em mim quando digo que livros são muito mais comentados do que lidos.

E bom, apesar de não recordar quando ouvi falar de Bukowski, lembro com clareza de quando tive meu primeiro contato com a obra dele. Naquele tempo, eu ainda trabalhava na redação de um jornal aqui de Porto Alegre e usava meu horário de almoço para ler. O fato é que foram sete títulos lidos em menos de dois anos.

(Também pesquei algumas poesias dele na internet, mas observo aqui que não levarei em consideração esses textos para a análise a seguir. Pessoalmente tenho comigo que poesia é algo íntimo de sua linguagem materna. E, apesar de entender bem a língua inglesa, não ousei arriscar mergulhar no texto original por uma questão de negligência – talvez algum dia faça isso e então refaça a análise.)

Acho que isso demonstra o quanto eu acabei apreciando a obra do velhinho safado. Não nego isso. Mas também sou justo o bastante para chamar atenção para o que não gosto ou o que não me parece muito adequado.

Antes de qualquer coisa, é preciso deixar de lado alguns pudores quando se trata de Bukowski. Evidentemente vamos encontrar quilos e quilos de baixaria, palavrões e outras coisas que podem corar as bochechas dos mais recatados. Mas é preciso entender que todos esses aspectos fazem parte da obra dele como um todo, mas nem de longe são o que definem sua literatura. Qualquer um que ouse se aventurar nos livros de Bukowski vai perceber isso – lembra do que disse que livros são mais comentados do que lidos?

Para ser honesto, eu lembro de apenas umas quatro cenas que eu fiquei “certo, isso foi longe demais” em sete livros dele que li. A título de exemplo, caso o leitor decida comparar um trecho “pesado” de Bukowski com um trecho “mediano” de qualquer livro digital erótico escrito para mulheres entediadas, vai parecer que o velhinho safado era um santo. E não é necessário nem gastar seu suado dinheirinho para isso. Dê uma navegada no Wattpad ou então pegue sua amostra grátis dos e-books mais vendidos da Amazon que tu vai ver que não estou errado.

Outra coisa que podemos observar nestas grandes obras da literatura digital que a contemporaneidade nos proporciona é que a baixaria é simplesmente ela por ela e só. Já em Bukowski, quando ela aparece, ela tem alguma função narrativa ou estilística que a obra pede.

Neste momento, algumas pessoas devem estar pensando: “Ah, Gabriel, mas os livros eróticos são assim mesmo, é esse o objetivo.” E quem objetou isso está certo, pois esse tipo de leitura tem esse objetivo – assim como quem assiste pornografia não está buscando as qualidades cinematográficas da película. Mas então porque vemos tanta gente se escandalizando com a obra do velhinho safado quando, na verdade, a baixaria encontrada em sua obra é parte dela e não ela em si?

Já refleti sobre isso e levantei algumas hipóteses. Uma delas é que, não raro, a primeira impressão que se tem de algo é a que fica. Dessa forma, talvez devido a época mais conservadora que ele vivia, esses pequenos aspectos obscenos podem ter saltado os olhos dos primeiros comentadores muito mais do que os demais pontos de suas obras. E como a maioria apenas lê tais comentários, e não as obras em si, o resultado é que a verdade fica ofuscada.

Porém, então se a obra de Charles Bukowski não se resume a baixaria que sua infâmia pressupõe, o que ele aborda então? Qual seu mérito? (Não ironicamente, já ouvi essa pergunta…) Bom, vamos por partes para facilitar.

Por que amamos Bukowski?

A grosso modo, ele criou uma obra profundamente poética a sua maneira. Vale notar que velhinho safado era uma pessoa cujo caráter era bastante questionável – bêbado, mulherengo, machista, agressivo e inclusive agrediu fisicamente sua esposa durante uma entrevista ao vivo na televisão.

Porém, conforme temos mais e mais contato com sua obra (que é bastante autobiográfica), é possível entender que a vida e o mundo não foram nenhum pouco fáceis para ele desde sempre. E devido ao seu caráter cheio de lirismo e melancolia (coisas que muitas vezes se confundem), que eram naturais de seu temperamento, como resultado temos uma pessoa que aceitou desde muito cedo que “não merecia nada de bom na vida”. No entanto, quando ele caía, era atirando e revidando, não deixando barato para ninguém.

Sem dúvida, sua personalidade era bastante complexa e com diversas nuances que sua obra acaba transparecendo. Não tenho certeza se as coisas que ele fez de ruim são passíveis de uma “passada de pano”, pois sei que existem alguns leitores imaturos que não conseguem separar o artista da obra. No fim, creio que o máximo que podemos fazer é dizer: “aquele velhinho safado era complicado, não é mesmo? Oh, olha só: vou ler mais um livro dele”. Acredito que é quase uma passada de pano, mas esse pano está bastante sujo e talvez mais manche do que limpe. Pessoalmente não me importo.

Outro ponto que se pode perceber em sua obra é o caráter profundamente honesto. Raramente (ou nunca) existe margem para dúvidas sobre o que Bukowski quis dizer com alguma frase ou passagem: está tudo muito claro e caso haja alguma dúvida é por falta de capacidade de cognição do leitor. E note que coloco aqui “cognição” e não “interpretação”, uma vez que esta segunda pode acabar dando margem para subjetividade.

Desta forma, uma característica como essa, mesmo sendo brutal e cruel em diversos momentos, também é gostosa de acompanhar. Afinal de contas, sabemos exatamente qual o tipo de autor (ou pessoa) estamos lidando. Ou será que alguém aqui gosta de ter que lidar com um ser críptico e enigmático o tempo inteiro, sem saber nunca qual é seu caráter ou intenção? Pode soar legal em uma obra ficcional, mas só até certo ponto e em certos momentos. Na vida real, tal como o velhinho safado nos apresenta, esse tipo de joguinho é um saco, tanto que podemos acabar preferindo alguém cheio de defeitos, mas franco. E talvez esse seja um dos principais motivos pelos quais ele é tão amado.

Alguns miúdos de sua obra

Algo digno de nota é que apesar de seus livros terem premissas e ideias iniciais, que podemos obter lendo a sinopse, a grande verdade é que nenhum deles possui uma “história” da forma como estamos acostumados. Em cada volume, vamos nos deparar com um tema central que é tratado como pano de fundo e, a partir disso, iremos encontrar uma série de pequenas histórias que se conectam de uma forma ou de outra através desse mesmo pano de fundo.

Vamos a alguns exemplos.

Em “Cartas na Rua”, vamos ter acesso a diversos pequenos e médios causos que poderiam se confundir com os triviais que se contaria em uma mesa de bar. Porém, essas narrativas formam um mosaico maior que é os anos que o Chinaski (alterego do próprio Bukowski) trabalhou na agência dos correios. Essa experiência marcou a vida do autor sem sombra de dúvidas, tanto que resolveu escrever sobre isso. Só que, devido sua personalidade caótica, podemos tentar presumir que ele pensou que escrever alguma grande história a respeito disso – tal como se espera de um grande romance da literatura mundial – era algo que não combinava consigo, portanto apenas contou aquilo que viveu (inventando algumas coisas, exagerando algumas e, quem sabe, omitindo outras). Como resultado, temos um volume original que o leitor lê até o fim sem ter muita certeza do que leu.

Sua obra mais famosa talvez seja “Misto Quente”. Esse nome pode soar estranho para os brasileiros e o título original em inglês (“Ham on Rye” ficaria “Presunto no Centeio” em tradução livre) não auxilia nada. Porém, o que Bukowski quis dizer com esse nome era algo próximo de consequências da pobreza e brutalidade do mundo para com almas mais sensíveis tal como a dele próprio. E como presunto e pão de centeio são alimentos baratos e típicos das classes mais baixas da época, ele acabou condensando a ideia do livro neste título. Tenho certeza de que se Bukowski fosse gaúcho, e vivesse nos tempos modernos, o título do livro seria algo como “Chinelagem”. Inclusive, essa narrativa dos anos de formação do jovem Chinaski são uma revelação brutal para compreender porque ele viria a ser o adulto problemático que acompanhamos nos demais livros. É quase como aquele momento que descobrimos o passado do vilão de uma história de fantasia e entendemos e simpatizamos com ele – apesar de muitas coisas não se justificarem, este livro explica quase todas. E vale lembrar que neste título também não temos exatamente uma “grande história”, mas sim diversos causos e lembranças de uma infância e juventude problemática de uma família de imigrantes durante a crise de 1929.

Sem dúvida, meu livro preferido de Bukowski é “Mulheres”. Sua premissa é tão simples que pode ser lida logo na primeira página: após passar por um jejum sexual de quatro anos, Chinaski começa a colher os frutos de seu ascendente sucesso como escritor e poeta – isto é, ao menos os frutos com o sexo oposto. Se fôssemos resumir esse livro, seria como se o próprio autor estivesse contando sobre as mulheres que levou para a cama após ficar famoso. Porém, se engana quem pensa que o livro é somente sobre isso – aliás, o próprio Bukowski já xingou repórteres ao vivo por deduzirem isso. Apesar de ter aberto as pernas de muitas de suas fãs, ele não tinha o amor genuíno de nenhuma mulher, tal como esperava sua alma sensível. Como resultado, muitas vezes, agia com indiferença, estupidez e até mesmo violência com estas mulheres, quase como se ele estivesse em um círculo vicioso do qual não conseguia sair. Apesar do título, esta é uma obra que fala muito mais sobre a angústia de grande parte dos homens. 

Seus contos mereciam uma análise a parte tanto quanto suas poesias, mas por estarem enquadradas dentro da prosa, vale algumas linhas a respeito. Essas narrativas curtas, muitas vezes, seguem uma construção parecida com as que vemos em obras pós-modernistas: a quebra consciente das regras gramaticais, uma escrita opressiva e que muitas vezes parece fazer com que o rosto do leitor seja arrastado no chão. Não raro encontraremos novamente Chinaski, porém também vamos ver o próprio Bukowski como o personagem principal em algumas histórias. Além disso, também vamos nos deparar com algumas histórias que fazem referência a ficção científica e a acontecimentos históricos recentes – tudo com a sinceridade brutal do velhinho safado. Pessoalmente não ouso arriscar dizer qual de seus contos é meu preferido, pois sempre que penso em algum, outro surge em minha mente. Mas todos valem a pena.

Aspectos poéticos

Assim, com tudo exposto até aqui, talvez fique mais claro entender quais são os maiores méritos da obra de Bukowski – contudo, recomendo sempre mergulhar e ousar conhecer a obra por si só. Mas basicamente, para quem não entendeu, aqui vai uma simplificação: em seus livros, o autor consegue extrair, de forma original, uma poesia original e violenta de sua vida miserável. Os aspectos poéticos de uma obra geralmente são percebidos pela análise dos detalhes que são expostos pelo artística de forma rítmica e harmônica. Assim o velhinho safado faz, mas sem qualquer margem para interpretação.

Talvez seja a sina de Charles Bukowski a fama de ter uma obra pornográfica, suja e violenta devido ao fato de livros não serem tão lidos. Sua vida e a atitude deplorável que tinha – algumas até mesmo sendo registradas pelas câmeras de televisão – não ajudam muito na melhoria desta imagem. Mas honestamente, talvez seja esse o charme que existe em um artista maldito, não é mesmo?

Se fosse apontar algum defeito da obra de Bukowski, talvez seja a repetição de diversos temas. Além disso, caso se leia muitos de seus livros em um período de tempo muito curto, pode soar uma leitura pouco imaginativa e enfadonha. Mas convenhamos: isso também costuma acontecer mesmo com a melhor poesia.

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