O inverno vulcânico que moldou a mitologia nórdica

Desde pequenas comunidades tribais, até mesmo grandes civilizações, todos os povos da história desenvolveram suas crenças e mitologias. Estudos antropológicos e históricos conseguem traçar diversos pontos em comum entre as crenças, como um mito da criação até uma profecia de fim do mundo. É evidente que existem diversas diferenças de um mito para outro, sendo que essas peculiaridades são influenciadas devido aspectos geográficos, históricos, culturais, dentre outros.

Porém, existe uma mitologia que foge muito dos padrões observados ao longo da história. Inclusive, apostamos que você com certeza já ouviu falar dela: a mitologia nórdica.

Segundo o historiador Neil Price, no livro “Vikings – A História Definitiva dos Povos do Norte”, quando se observa os mitos nórdicos, é possível observar uma particularidade que não se vê em outras culturas. Ele explica que as histórias do povo escandinavo, ao invés de começar com um mito da criação mais “evidente”, na verdade iniciam justamente com a profecia do fim do mundo (também conhecido como Ragnarok). Mas aqui vale um esclarecimento: os escandinavos tinham sim mitos da criação do mundo e da humanidade, mas essas histórias costumam ser colocadas em segundo plano dentro da cultura dos povos do norte da Europa.

Essa é uma característica bastante intrigante, pois não é algo que se observa nas demais culturas do mundo. Porém, os historiadores levantam uma hipótese que explica esse fato. E para nossa “sorte”, a mitologia nórdica foi uma das mais recentes a serem desenvolvidas por um povo, portanto ainda se mantém documentos históricos mais precisos. E tudo começou com erupções vulcânicas ao longo do século 6.

O que é um inverno vulcânico

Caso tenha lido histórias a respeito da Guerra Fria, talvez o leitor saiba o que é o conceito de um inverno nuclear – a franquia “Metro 2033” explorou bem essa ideia. Pois saiba que um inverno vulcânico é algo bem semelhante, mas sua origem é totalmente natural.

A grosso modo, esse fenômeno ocorre após uma erupção vulcânica de grandes proporções na qual toneladas de cinzas vulcânicas e enxofre são lançados na atmosfera da Terra. Assim, os raios solares não conseguem atingir a superfície do planeta, o que causa uma redução drástica na temperatura. Como se isso não fosse o suficiente, as plantas também acabam com dificuldade em fazer fotossíntese, o que gera problemas ambientais e também na agricultura.

A duração total de um inverno vulcânico, assim como o nuclear, costuma variar dependendo de alguns fatores. O resfriamento pode durar poucas semanas até mesmo anos.

Inclusive, existem especulações de que erupções vulcânicas contribuíram para a manutenção da Era Glacial, mas cientistas afirmam que esses fatores tiveram pouca relevância para o período. Mais recentemente na história, tivemos relatos de períodos anormalmente frios no século 18 e 19. Um dos casos mais notórios foi o “Ano Sem Verão” em 1816, no qual o oeste da Europa e leste da América do Norte passaram por frios rigorosos até mesmo durante o verão. Uma das causas mais prováveis foi a erupção do vulcão do Monte Tambora, na Indonésia, que aconteceu em 1815. Esse episódio lançou gases que se alojaram no norte do Oceano Atlântico.

Contudo, um dos episódios mais dramáticos da história da humanidade aconteceu entre os anos da primeira metade do século 6. E tudo envolveu também erupções vulcânicas em diferentes partes do mundo.

O inverno que anuncia o Ragnarok

Ainda segundo Neil Price, existem evidências de que entre 536 e 539 ao menos dois vulcões “acordaram” na Terra. Os cientistas não têm certeza do local exato onde aconteceu o primeiro, mas provavelmente foi em alguma parte do sudeste asiático. Já o segundo foi registrado no lago de Ilopango, na região onde atualmente é El Salvador, na América Central. Existem especulações de que em 547 um terceiro episódio parecido também em algum local da Ásia, mas não existem estudos conclusivos sobre isso.

Dessa forma, como se pode imaginar, o Hemisfério Norte foi o mais afetado, uma vez que os gases vulcânicos tendem a se acumular na região entre a Europa e a América do Norte. Mas não só nesta região. Registros chineses da época indicam que caiu neve durante os meses de verão. Em 536, historiadores bizantinos registraram em seus relatos sobre as guerras contra os Vândalos que “este ano ocorreu um terrível presságio. Pois o sol emitia sua luz sem brilho … e lembrava excessivamente com o sol no eclipse, pois os raios que ele emitia não eram claros “. Já em 538, o estadista romano Cassiodoro também afirmou que a luz do sol era fraca e que as colheitas haviam falhado.

Agora imagine: se em terras férteis a situação era dramática, o que imaginar de uma região que nunca foi muito adequada para a agricultura e vida de forma geral? Pois se pode pensar então que o estado dos países escandinavos era devastador.

Estimativas recentes apontam que as temperaturas reduziram 3,5ºC durante o período de inverno vulcânico em toda a Escandinávia. Para ter uma ideia, apenas 3% do solo da Noruega é adequado para agricultura e, nestas condições climáticas, tornaria praticamente todo o território do país um grande solo infértil. Além disso, as florestas também tiveram uma retração de vegetação e animais e a chuva ácida afetou a vida marinha. O ápice desta situação durou exatos três anos, mas estimativas apontam que os efeitos de longo prazo duraram por mais de 80 anos. Neste período, a população da região praticamente caiu pela metade e o que sobrou viveu no limite da resiliência.

Esta situação deixou uma marca profunda na religião do povo escandinavo. Segundo estudos de geomitologia, que é a área que estuda a relação dos mitos de um povo com desastres e eventos naturais, o inverno sem fim de três anos que anuncia o Ragnarok nos mitos nórdicos tem uma relação direta com o inverno vulcânico do século 6. Segundo Snorri, em sua “Edda”, o arauto do crepúsculo dos mundos ocorre da seguinte forma:

Primeiro chegará um inverno chamado Fimbulwinter
Então a neve cairá dos quatro pontos cardeais, incessantemente.
Virão geadas, inclementes, soprarão ventos possantes.
O sol de nada servirá.
Três invernos semelhantes vão se suceder,
E entre eles não haverá verão.

Como se pode ver, essa descrição é muito próxima do ciclo de desastres climáticos causados pelo inverno vulcânico. Outro ponto de destaque é que, ao contrário de outras mitologias, as lendas nórdicas têm descrições muito precisas de como o sol “brilha negro” através das nevascas e como o céu é escuro antes do Ragnarok. E como a Era Viking durou pelo período entre o século 7 e 11, é bem plausível apontar como tal evento influenciou na própria forma como os escandinavos cultuavam seus deuses.

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