Na toca do coelho: entenda como algoritmos seduzem os usuários a passarem horas consumindo conteúdos

Em uma madrugada do inverno de 2020, no meio da pandemia de coronavírus, José da Silva começou a ler um artigo da Wikipédia sobre a doença que havia o obrigado a cumprir quarentena e usar máscara por mais de dois anos. Depois disso, um link nessa mesma página o levou a outro texto sobre o surto de gripe espanhola em 1918. Sem nem mesmo terminar de ler esses dois artigos, ele já havia clicado para ler um terceiro sobre epidemiologia. E assim, indo de link em link, José da Silva consumiu diversas pílulas esparsas de temas correlacionados durante tanto tempo que, quando se deu conta, os primeiros raios de sol já brilhavam através das frestas da janela de seu quarto. No fim, ele se viu perdido em um artigo sobre a Revolução Cultural Chinesa, promovida por Mao Tsé-tung, sem nem mesmo lembrar como havia chegado até ali caso não fosse seu histórico de navegação.

Na noite seguinte, ele estava escrevendo um artigo para um trabalho da faculdade e usou como fonte um vídeo no YouTube. Nas recomendações ao lado do player, ele se interessou por outro conteúdo ligeiramente relacionado ao tema de seu texto e acabou clicando para assistir. Assim, sucessivamente, de forma semelhante a madrugada anterior, indo de link em link, ele passou horas assistindo vídeos até que, no fim, estava se divertindo vendo um norte-americano replicando versões realistas de armas utilizadas por personagens populares da ficção – algo bem distante do seu ponto de partida. Por fim, seu artigo ficou para ser finalizado ao longo da tarde seguinte.

Pois bem: José da Silva caiu na toca do coelho – ou “rabbit hole”, como é mais conhecido. O nome do personagem que ilustra a abertura da reportagem não foi escolhido à toa, pois é a junção dos dois mais comuns do Brasil. A história e as circunstâncias são semifictícias, usados com a devida liberdade para fins informativos, já que esse caso ilustra algo que todos com acesso a um computador ou smartphone já passaram. Pelo menos vinte pessoas diferentes que responderam a essa reportagem já relataram experiências semelhantes. Relatos quase iguais são encontrados sem muito esforço na internet.

Não seria surpreendente caso alguém já tenha suspeitado que o termo ”rabbit hole” tenha algo a ver com o livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Contudo, o lançamento da obra ocorreu em 1865 – quase um século antes do surgimento da Arpanet, o protótipo da internet. É difícil mapear quando começou essa associação entre o processo de se perder em diversos links de um determinado tópico com o fato de a protagonista de Carroll ter entrado em um mundo surrealista após cair na toca de um coelho. Ao se fazer buscas reversas no Google, vamos nos deparar com menções muito antigas de páginas que citavam a obra de Carroll ou então, literalmente, tocas de coelhos. Portanto, é muito difícil de estimar com precisão quando “rabbit hole” passou a ser usado para descrever o ato de se perder através de links correlacionados de um mesmo tópico.

Na mídia estrangeira, a expressão já é conhecida há anos — um artigo de junho de 2015 da The New Yorker já abordava o assunto —, mas o termo só começou a ganhar mais destaque no Brasil recentemente. Essa crescente popularização da ideia vem sendo colocada em evidência por criadores de conteúdo insipientes do YouTube, com poucas dezenas de milhares de inscritos em seus canais que abordam temas mais alternativos, como fatos estranhos da internet, memórias de um passado recente, as “lost medias”, etc. Dois destaques são para os canais Semydeus e DioMagenta. No entanto, é válido notar que esses canais abordam os rabbit holes não como um fenômeno psicológico de divagar de links em links até perder a noção do tempo. Esses youtubers tratam os rabbit holes como sendo uma espécie de “grande tema” ou “história” que, para ser compreendido, é necessário navegar em diversos conteúdos através de diferentes links – se aproximando do conceito de transmídia das teorias da comunicação.

No entanto, os rabbit holes são encarados de outra forma pelos pesquisadores de psicologia da informática. De acordo com Andrea Jotta, pesquisadora do Janus – Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação, da PUC-SP, o ato de se perder em links é visto como sendo um fenômeno estimulado pelos algoritmos das grandes empresas de tecnologia, como Meta, Twitter e Google. A pesquisadora explica que a internet atual é bastante diferente daquela que foi idealizada no início, uma vez que antes se tinha uma ideia de que a rede mundial de computadores serviria para “romper barreiras, reduzir preconceitos e disseminar conhecimento”.

Contudo, conforme as grandes empresas de tecnologia foram percebendo o potencial de mercado que esse novo cenário estava revelando, foram desenvolvidos meios de reter a atenção dos internautas pelo máximo de tempo possível, oferecendo conteúdos personalizados com base no que os algoritmos revelavam de cada usuário. Dessa forma, todo esse cenário foi uma combinação perfeita para que os rabbit holes fossem criados, sendo muito fácil se perder por horas em vídeos de YouTube, trends de Twitter e rolagem de feed do Instagram e Facebook.

Mesmo que sites como Wikipédia e portais de notícias tenham objetivos mais próximos com aqueles da internet “primitiva”, Andrea diz que ainda esses canais acabam, eventualmente, se submetendo à ideia de reter o internauta o máximo de tempo possível em suas páginas. Contudo, como a edição desses sites é manual e não está sujeita a um algoritmo altamente preciso, a possibilidade de se criar um rabbit hole é mais limitada nesses casos, pois depende de esforço humano e deduções dos editores.

— Mas vale dizer que apesar de existir essa necessidade em manter a pessoa “presa” no site o máximo de tempo possível, hoje em dia, devido a conscientização com relação a importância da saúde mental, essas próprias plataformas grandes, como Instagram e Facebook, estão desenvolvendo mecanismos para alertar o internauta caso ele esteja passando muito tempo online. No entanto, o TikTok por exemplo, já deixou bastante claro que não tem esse comprometimento e quer que o usuário passe o maior tempo possível no aplicativo — afirma.

Andrea diz que é possível se observar efeitos semelhantes a de um vício em pessoas que frequentemente se veem presas em rabbit holes. Ela explica que caso um indivíduo passe horas em estímulo constante ao se consumir conteúdos online, o ato de se desconectar é como se o cérebro “reclamasse” de estar perdendo aquela sensação de prazer.

A pesquisadora também comenta que os rabbit holes são mais prejudiciais nos mais jovens, uma vez que o sistema neurológico responsável pelo autocontrole só é plenamente desenvolvido aos 23 anos. Dessa forma, as pessoas mais novas são mais propensas a ficarem horas imersas em conteúdos de sua própria bolha online. Contudo, Andrea afirma que é possível observar uma crescente conscientização dos pais e responsáveis, apesar de que hoje em dia, devido ao desenvolvimento das tecnologias móveis, tenha ficado mais complexo mensurar quanto tempo as crianças e adolescentes estão passando online.

Por mais que um assunto seja tentador e se queira passar o maior tempo possível consumindo aquele mesmo conteúdo, como qualquer coisa, requer moderação e regramento. Mesmo que seja difícil que se consiga desvincular da lógica de assistir vídeos, rolar o feed das redes sociais e clicar em links correlacionados, vale a pena estabelecer limites para se fazer outras atividades que não dependam necessariamente da internet para realizar. Passear com o cachorro no parque já é um bom começo.

Dicas para evitar a toca do coelho

  • Estabeleça objetivos claros quando for fazer alguma pesquisa na internet, evitando se dispersar. Um simples bloco de notas para registrar tópicos importantes ajudam a manter a clareza.
  • Ao navegar em redes sociais, procure estabelecer limites diários quanto ao uso. Caso o seu trabalho envolva esse tipo de plataforma em alguma medida, procure se desconectar quando estiver fora do seu horário de trabalho. Acredite: poucos fatos que acontecem no mundo são realmente importante; se tudo importa, então nada importa.
  • Procure ter atividades que não envolvam o computador ou o smartphone, como musculação, passeios ao ar livre, ler livros físicos ou jogar jogos de tabuleiro com os amigos.
  • Caso esteja sentindo vazio existencial que parece ser preenchido apenas pelo contato constante com o mundo digital, considere buscar ajuda profissional. Isso pode ser alguma questão que precisa de ser observada por um profissional.

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