Foco, ferro e frango: os caminhos dos atletas do fisiculturismo

Faltava uma semana para que o fisiculturista Matheus Enk subisse no palco pela primeira vez. O foco na rotina de treinos e dieta permanecia inabalável, mas mesmo sendo um atleta de 1,87m e 110kg, seu semblante era cabisbaixo e frágil. Evitava falar, pois estava indisposto pela fome e pelo cansaço. Quando era obrigado a dizer qualquer coisa para família e colegas de trabalho e faculdade, sua voz era baixa e rouca.

— Eu estava em um nível de estresse que nunca tinha experimentado antes em toda a minha vida. Tudo me irritava, mas ao mesmo tempo estava muito cansado para fazer qualquer coisa — comenta o atleta ao lembrar daquela última semana.

Quando concordou em mostrar sua rotina tanto de atleta, como de trabalho, onde atua como personal trainer e instrutor de musculação, ele pediu para ter a conversa inicial deitado em sua cama. Naquele dia, ele havia dado aulas durante a manhã, treinaria durante a tarde e ainda faria plantão na academia na parte da noite, portanto “precisava se economizar um pouco”. Mas, antes, fez questão de mostrar o troféu e a medalha que ganhou logo em sua primeira competição.

O fisiculturista começou na musculação aos 14 anos por questões de saúde, pois estava obeso e sedentário. Porém, rapidamente essa fase foi superada, e o que começou como algo visando uma melhora em sua qualidade de vida, se tornou em seu próprio estilo de vida. Mesmo sendo considerado um atleta jovem, seu físico faz com que as pessoas pensem que ele é mais velho do que sua idade real — uma vez que volume muscular é algo construído ao longo de vários anos. Ele atribui seu condicionamento a sua genética privilegiada tanto quanto ao seu empenho nos treinos e dieta, pois no começo treinava “de forma instintiva”.

— Eu nunca almejei competir, sendo que comecei a pensar nisso quando entrei no Instituto Carlos Ortiz, em 2021, e acabei me aproximando de treinadores. Vi que vários estavam de olho em mim, querendo me treinar até mesmo de graça, mas ainda sem a pretensão de subir no palco. Porém, comecei a receber o incentivo e eu gostava do esporte fisiculturismo, então acabei aceitando competir — conta.

Com um sorriso no rosto, Enk lembra que quando começou a ficar mais musculoso, seus amigos começaram a achar isso incrível, mas sua família pensava que “já estava de bom tamanho”, principalmente seu pai. Contudo, seus pais e irmã afirmam que sentem muito orgulho, apesar de ainda olharem com reservas a carreira que pode “ser muito desgastante”. O atleta também comenta que o fato de ser um fisiculturista acabou abalando seu primeiro relacionamento, pois sua namorada “era do interior” e tinha muita dificuldade em apresentá-lo para a família. Contudo, com outro sorriso no rosto, fala que atualmente as mulheres costumam se aproximar dele naturalmente, apesar de algumas pessoas passarem dos limites ao abordá-lo.

Já sofri assédio de mulheres e de homens, mas nunca cheguei a passar por uma situação constrangedora. No máximo uma pessoa pode ficar assustada comigo. Por exemplo no elevador: as crianças ficam um pouco apavoradas, as senhoras mais velhas também às vezes me olham com cara de nojo. Eu fico feliz com isso, porque quer dizer que está bizarro, assustador, então pra mim está ótimo. Considero um feedback positivo — conclui.

E mesmo sendo considerado por treinadores como um dos atletas com maior potencial de destaque ao longo prazo, Enk afirma que pretende fazer uma carreira mais curta, de apenas quatro ou cinco anos. Seu maior objetivo é ser treinador de outros fisiculturistas. Contudo, ele chama atenção que um treinador que possui apenas o conhecimento teórico da faculdade de educação física não é o suficiente. Para ele, quem está orientando outras pessoas para subir no palco precisa “sentir na pele” o que o outro está passando, até por uma questão de empatia.

Além disso, Enk admite que essa carreira só é rentável quando o atleta atingiu um nível muito alto tanto de condicionamento físico quanto de reconhecimento. Só de alimentação, ele gasta em média R$ 3,5 mil por mês, fora os recursos hormonais e acompanhamento com fisioterapia, massagista e suplementação — totalizando mais de R$ 5 mil mensais.

Fazendo seis refeições por dia, em apenas uma delas mostrou que consome mais de 700g de alimentos cuidadosamente pesados entre proteínas e carboidratos. Por dia, ele ingere um total de 5,5 mil calorias durante a fase de ganho de músculos (conhecida como “bulking”), fora as refeições livres que tem a cada três dias, que chegam a ter até 3,5 mil calorias. Durante a fase de preparação para a competição, quando o objetivo é perda de gordura e retenção líquida, o seu consumo diário de comida cai para menos da metade do normal.

Ao mostrar o treino que faz para os músculos do peito, Enk realizou uma série de cinco exercícios diferentes, mas nenhum deles com menos de 100 quilos em cada aparelho. Em determinado momento, seu empenho o fez realizar uma série de supino inclinado (exercício que trabalha a parte superior do tórax), com um total de 160 quilos. O esforço excessivo quase o fez desmaiar duas vezes em uma única tarde, mas ele afirma que isso é normal quando “se está tendo objetivos em mente”.

— É um esporte de alta performance, que exige muito do teu tempo e da tua saúde. Não é saudável, mas eu resolvi encarar esse desafio por querer ser um fisiculturista, então tenho que assumir as consequências.

Dentro de suas inspirações no esporte, Matheus Enk fala que sua maior referência é o fisiculturista brasileiro Ramon Queiroz, do qual confessa que um dia gostaria de treinar junto. Além disso, destaca que se um dia existir a oportunidade de falar com ele, dirá que vai em busca de um corpo igual ao do ídolo. Ele também reforça que não é recomendado buscar ser um fisiculturista sem ter o acompanhamento de um bom treinador, pois é uma prática que envolve muitos riscos.

O caminho para os palcos

Em um sábado de clima ameno, atletas masculinos e femininos se reuniram no Instituto Carlos Ortiz para um ensaio de poses de palco. Faltava uma semana para mais uma competição e alguns dos presentes iriam participar. O semblante desses atletas era de cansaço e estresse — algo que já é normal de se esperar de alguém que está prestes a disputar. Independente das intenções de cada um, o treinador fez com que todos ensaiassem os movimentos diversas vezes, o que requer controle muscular e consciência corporal avançadas. Ortiz dava o seu melhor para que seus futuros competidores entendessem tudo isso e eles ouviram atentos.

Atuando há anos na preparação de atletas que estão prestes a subir nos palcos, Ortiz comenta que o papel do treinador é “encurtar o caminho errado”. Além disso, ele destaca que esse mesmo olhar de fora deve servir para “puxar de volta” tanto o fisiculturista que tem uma visão distorcida de si mesmo ou até mesmo aqueles que acabam adotando um narcisismo perigoso.

— Teve uma situação que a esposa de um dos meus atletas contou para mim uma vez: eles estavam no mercado comprando cebola e tinha dois homens que olharam para ela. Esse meu atleta olhou para eles e virou para falar com ela. Ela pensou: “ferrou, ele vai querer brigar com os caras”. Mas ele chegou e disse: “aqueles caras não param de olhar para os meus braços, tu viu só?” — lembra Ortiz sem conseguir segurar uma risada nervosa.

O treinador destaca que nenhum dos atletas começa a fazer musculação com a intenção de, um dia, subir no palco. No início, a maioria costuma achar todo esse esforço empregado e o desenvolvimento muscular como algo exagerado. Porém, conforme o aluno começa a ver resultados positivos no próprio corpo, isso serve de estímulo para que o trabalho continue até que, fatalmente, a pessoa já está trilhando um caminho para se tornar um fisiculturista. Ele pontua que, tudo começa, por exemplo, com os homens querendo apenas ter um braço mais volumoso, ou então com as mulheres desejando somente perder as gordurinhas incômodas.

Antes de ser um treinador de atletas, Ortiz também foi um. Sua vida sempre foi ligada ao esporte, mas o começo da trajetória se deu nas artes marciais, com judô e jiu-jitsu brasileiro — o que o levou a cursar educação física. A entrada na musculação começou de forma paralela, justamente para melhorar seu desempenho nas lutas. Porém, logo acabou encontrando sua paixão pelo fisiculturismo, apesar de ter encontrado diversas dificuldades nesse caminho.

— Uma coisa que me levou a querer ajudar outros atletas foi o fato de ter tido dois infartos aos 28 anos, principalmente por conta do uso errado dos esteroides anabolizantes, além de ter ficado mais gordinho ao invés de musculoso. Isso acabou me causando uma insuficiência cardíaca que eu carrego até hoje. Então, todas essas falhas acabaram me levando a querer estudar cada vez mais e buscar mais conhecimento para melhorar, pois para mim era difícil entender como um atleta conseguia chegar naquele condicionamento físico. Foi aí que eu entendi que não tem nada a ver com o que está dentro da ampola ou da cápsula, mas dentro da rotina — conta.

O treinador desabafa também que, se tivesse uma orientação adequada, ele não teria causado tantos danos à própria saúde e, talvez, pudesse continuar tendo um físico mais competitivo. Quando começou seu caminho na orientação de outros atletas, sua consultoria era gratuita justamente pelo fato de não querer que outros passassem pelo que passou. Pelo fato do fisiculturismo ser um esporte que usa muitos esteroides anabolizantes, diuréticos, além da rotina pesada de treinos e alimentação controlada, o papel do treinador é justamente servir como norteador para essas questões.

Dentre as maiores dificuldades que encontra, Ortiz destaca duas em particular: a necessidade constante de atualização e a banalização da profissão. Ele conta que, para se manter sempre informado, lê no mínimo um artigo científico por dia, que rende a escrita de resumos e esquemas. Além disso, diz que hoje em dia existem “coachs” que não têm o conhecimento prático e teórico adequados, o que faz com que a maioria das pessoas pense que é muito mais fácil do que é na realidade.

— Um atleta que está sendo mal orientado por um “treinador” desses pode acabar subindo no palco com um condicionamento frustrante, o que pode acabar levando ao esporte perder um praticante que poderia ser um grande destaque. Além disso, hoje a gente tem muito mais acesso à informação, o que faz com que eu receba muitas pessoas que já têm uma boa base teórica. Por isso, eu preciso sempre estar mais atualizado para poder ajudar de forma adequada — destaca.

Ortiz também chama atenção para o preconceito que as pessoas costumam ter contra pessoas extremamente musculosas, mas que a marginalização do esporte está sendo reduzida ao longo dos últimos anos. Ele relembra que, em meados de 2009 quando começou nesse mundo, as pessoas costumavam ver fisiculturistas como drogados, marginais e estúpidos, o que acabava gerando ressentimento dos próprios atletas. No entanto, o treinador também destaca que o narcisismo de alguns com relação ao próprio corpo pode acabar, de fato, levando a tomar medidas e adotar pensamentos pouco inteligentes — o que pode corroborar com esse preconceito.

Não adianta tu ter um físico desses e acabar se tornando um idiota de fato. Geralmente, os fisiculturistas são os caras que mais estudam para chegar naquele nível de desenvolvimento, mas tem esse problema. A grande maioria dos “marombeiros” são narcisistas, infelizmente — pontua.

Ao comentar a respeito dos atletas que já preparou, Ortiz lembra do caso de um que acabou escapando da dieta, mentiu que estava mantendo o protocolo e usou um hormônio para “compensar o estrago”. Isso acabou gerando uma reação tão forte que ele acabou convulsionando, precisando ser entubado e quase falecendo nesse processo.

— Ele era do interior e eu viajei para lá para ver o que tinha acontecido. Eu estava me sentindo culpado o caminho inteiro, sem entender direito o que havia acontecido, mas aí a esposa dele me contou que ele havia comido uma comida que a mãe dele fez e acabou fazendo tudo isso — conta.

A saúde mental dos fisiculturistas também é uma questão que precisa ser observada durante toda a preparação para a subida nos palcos. Durante a fase de preparação (conhecida como “cutting”), o atleta é colocado em uma restrição calórica severa, além de uma hiperhidratação corporal. Essas práticas servem para aumentar a queima de gordura e para eliminar a retenção líquida, deixando os músculos mais definidos. Mas, isso pode acabar gerando uma compulsão alimentar posterior bastante preocupante, ou então o inverso: aquela pessoa vai querer manter o físico de competição por mais tempo do que o recomendado. O uso dos fármacos, que muitas vezes têm efeitos psicológicos, acabam corroborando com isso.

Portanto, Ortiz conclui que muito do papel do treinador, além de saber orientar na parte física, nutricional e hormonal do esporte, também é saber lidar com a parte psicológica do atleta. Mas ele lembra também, com carinho, dos seus diversos atletas que, hoje em dia, trabalham na área da saúde e que são campeões dentro das respectivas categorias.

Aumentando os ganhos?

“O que está dentro da ampola ou da cápsula” é um tema que rende bastante polêmica e discussões quando se trata de fisiculturismo. Apesar de ser um medicamento administrado por médicos em casos de deficiência nas gônadas ou em casos de insuficiência na produção natural de testosterona, os esteroides anabolizantes são usados pela maioria dos atletas para potencializar seus ganhos na academia.

Essas substâncias nada mais são do que doses de hormônios masculinos que têm dois efeitos principais: o aumento da hipertrofia muscular (ganho de volume do músculo esquelético) e o aumento dos andrógenos, isto é, o desenvolvimento das características inerentes ao sexo masculino. E são os resultados desse segundo que costumam causar problemas como insuficiência cardíaca, hipogonadismo, aumento da próstata, deficiência no funcionamento dos rins, fígado e cérebro. Além disso, o uso paralelo de outros medicamentos acaba potencializando todos esses efeitos colaterais.

Segundo Clayton Macedo, presidente da comissão de endocrinologia do exercício da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, quando não existem indicações embasadas para o uso de esteroides anabolizantes, a única forma de um médico prescrever a substância é através de fraude. Ele destaca que, em muitos casos, esses profissionais têm acordos com farmácias ou laboratórios e ganham comissão com a venda dos medicamentos. Para que esses médicos sofram algum tipo de penalidade, é necessário que haja a denúncia junto ao Conselho Regional de Medicina — apesar de existir um certo “código de silêncio” entre os envolvidos.

— O pior é quando esses esteroides têm origem clandestina, através de contrabando, e produzidos sem qualquer controle de qualidade. Nesses casos, a rota que esses medicamentos chegam é a mesma do tráfico de drogas e armas que a gente já tem mais conhecimento através da grande mídia. Vale lembrar também que quem prescreve, vende ou aplica esteroides sem ser médico já tem um agravante ainda maior dentro da Legislação, pois é enquadrado como crime contra a saúde pública — explica Macedo.

O endocrinologista também chama atenção para os efeitos psicológicos que o uso de esteroides anabolizantes traz, como irritabilidade, agressividade, depressão e ansiedade. Ele destaca um estudo publicado em 2019 na revista Drug and Alcohol Dependence que mostra que os usuários de esteroides anabolizantes têm nove vezes mais chance de cometer um crime violento. Ao longo de 11 anos de uso, cerca de 18,5% das pessoas estudadas haviam sido presas em algum momento por conta desse tipo de conduta.

Como forma de combater e conscientizar sobre os riscos do uso de esteroides anabolizantes por pessoas que querem aumentar seus ganhos de massa muscular, Macedo conta que criou o projeto #BombaTôFora. Esse projeto trabalha tanto na parte da prevenção para que a pessoa evite de usar as substâncias, mas também no tratamento e alerta de quem já faz uso.

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