Higurashi: um anime de terror improvável e divertido

A primeira cena é chocante: um quarto escuro onde um duplo homicídio está sendo executado de uma forma brutal. Tudo isso serve para mostrar, logo de cara, o teor da história. Conforme os episódios vão sendo desenvolvidos, o expectador começa a se sentir intrigado e confuso, apesar de que, também, respostas vão sendo entregues com relação a eventos passados. Durante os primeiros 26 episódios da primeira temporada, é praticamente impossível deduzir com precisão qual é a intenção de “Higurashi no Naku Koro ni”. Parece apenas diferentes versões, em realidades paralelas, para os mesmos eventos. E só depois da segunda temporada que tudo começa a fazer sentido.

Assim como havia dito a respeito de “Shiki” sobre ter paciência para obter sua recompensa, “Higurashi no Naku Koro ni” exige perseverança para descobrir a verdade por detrás de tudo. Porém, diferente daquela história de vampiros, a jornada não é tão tortuosa para o expectador. Como cada ciclo de acontecimentos ocorre em quatro ou cinco episódios no máximo, o desenvolvimento ocorre de forma mais ágil. Fazendo um paralelo grosseiro, seria como a relação entre ler um romance e uma coletânea de contos de 400 páginas cada: ambos têm a mesma quantidade de páginas, mas é mais fácil ler 40 contos de 10 páginas cada do que uma única história de 400 páginas.

E quando citei os “ciclos” não foi por mero acaso, pois a história se trata exatamente disso. Somente na segunda temporada que vamos descobrir quem é a verdadeira protagonista dentre todos os personagens apresentados e porque existem diferentes versões dos mesmos acontecimentos: todos estão presos em um ciclo temporal, quase como uma viagem no tempo. Para quem já assistiu “No Limite do Amanhã” (2014) e “A Morte Te Dá Parabéns” (2017), a ideia é quase a mesma. A diferença é que “Higurashi no Naku Koro ni” fez isso quando ainda não era tão popular.

Dentre os episódios “canônicos” e OVAs, este anime conta com algo entorno de 100 episódios, além de várias outras mídias, como light novel, mangá e visual novel (um gênero de jogo de videogame pouco popular aqui no Ocidente) e games. A franquia como um todo é muito popular no Japão, sendo que não raro sai alguma novidade quando se acha que não tem mais o que espremer do universo. E, infelizmente, as demais mídias são inacessíveis no Brasil, senão quase impossíveis de se acompanhar se não souber falar japonês ou inglês. Então, o que nos resta, é o anime – que, sinceramente, já basta para começar.

A Síndrome de Hinamizawa

Higurashi no Naku Koro ni, também conhecido como When They Cry, gira em torno de um ciclo de eventos trágicos e mortes que ocorrem na pequena vila rural de Hinamizawa, durante o festival anual de Watanagashi, em junho de 1983. A história segue um grupo de amigos que vivem na vila: Keiichi Maebara, Rena Ryuuguu, Mion Sonozaki, Shion Sonozaki, Satoko Houjou e Rika Furude. E ao longo dos ciclos, todos irão ser tanto assassinados quanto assassinos – bom, quase todos…

À medida que a história avança, elementos sobrenaturais, psicológicos e de suspense vão sendo revelados. A trama explora temas como paranoia, amizade, traição, violência e loucura. O verdadeiro mistério gira em torno da origem dessas tragédias repetitivas, envolvendo uma doença chamada Síndrome de Hinamizawa e um complexo enredo de conspirações, rituais e tramas que influenciam o destino dos personagens.

Como havia dito anteriormente, na primeira temporada não sabemos quem é o protagonista, pois cada ciclo parece ter seu próprio. Na primeira cena do primeiro episódio, vemos Keiichi matando Rena e Mion, o que pode nos levar a pensar que eles seriam os principais da trama, mas não é bem assim que funciona. Aliás, vale destacar que o desenvolvimento do anime faz questão de levantar diferentes opções de “ship” entre os personagens, incluindo Keiichi com as duas garotas que acabou de assassinar. Uma OVA posterior até brinca com isso, porém uma outra deixa subtendido que, se fosse para rolar algum romance, seria entre Keiichi e Rena – mesmo que o elo dessa ligação seja um taco de beisebol e um cutelo.

Só que este é um anime de terror com traços bonitinhos, então não temos muito tempo para romance.

Arte pode soar inadequada para um anime de terror, mas este é um dos maiores méritos da obra. Genuinamente, nos importamos com os personagens da trama e quase dá vontade de cuidar de todos, pois, sem exceção, todos possuem seus próprios problemas e demônios particulares. Além disso, o anime aposta muito no clichê do “poder da amizade” comum em muitos outros da cultura popular. Contudo, Higurashi no Naku Koro ni faz isso da forma correta para a história poder se desenrolar, sem exageros. E curiosamente, este aspecto seria explorado de forma irônica nas duas temporadas mais recentes – mas vamos com calma.

Para a surpresa de muitos logo na segunda temporada, Rika Furude é revelada como a grande protagonista da trama, mas nós tivemos dicas disso logo na primeira temporada. O único fator comum em todas as linhas do tempo é que ela nunca sucumbia à loucura da Síndrome de Hinamizawa e acabava todas as linhas do tempo sendo morta de alguma forma. Tudo isso ocorre porque ela é quem está presa nestes ciclos intermináveis de morte e sofrimento. Sendo de uma família de sacerdotes locais, ela tem contato direto com uma deusa da cidade que a fez entrar em toda esta bagunça. Apesar de ter o corpo de uma criança, ela afirma que já passou mais de 100 anos nestes ciclos de duas semanas de junho de 1983. Pois é.

Sobrenatural como coadjuvante

Assim como sabemos apenas depois de muitos episódios quem é a protagonista, também precisamos enfrentar mais alguns da segunda temporada para descobrirmos quem está por trás de todos os acontecimentos envolvendo a Síndrome de Hinamizawa – alguém que acreditávamos ser uma das primeiras vítimas das tragédias. Aqui, neste ponto, percebemos que os acontecimentos que levam à morte e à loucura se aproximam mais da ficção científica do que do sobrenatural. Assim, além de nos apegarmos aos personagens devido à excelente construção de suas relações, nós também ficamos aterrorizados porque o “terror” não tem nada de sobrenatural, mas sim puramente humano.

Acredito que este seja o grande fio-condutor de Higurashi no Naku Koro ni. E isso não mudou nem mesmo nas duas temporadas mais recentes que conseguiram “rebootar” ao mesmo tempo que dar sequência à história original. Mesmo que o sobrenatural e o extraordinário estejam ali presentes, não é ele a causa de tudo aquilo que nos deixou angustiados ou aterrorizados. Digo isso porque, em “Gou” e “Sotsu” (o nome de cada temporada), a melhor amiga de Rika, Satoko, ganha poderes de viver em ciclos da mesma forma. De forma macabra, ela também tem acesso a uma substância que reproduz a Síndrome de Hinamizawa.

Diferente de Rika, que não tinha escolha a não ser viver nestes ciclos, Satoko usa seus poderes para que a amizade entre as duas nunca acabe. Aqui, neste ponto, percebemos que ambas, apesar de melhores amigas, não entendem de verdade os sentimentos uma da outra, alimentando uma relação tóxica que rendeu duas temporadas a mais para os fãs. E vale um alerta: o final desta nova etapa da história tem um final mais agridoce para quem estava esperando algo mais otimista, como foi ao final das duas primeiras temporadas. Isto torna a conclusão ruim? De jeito nenhum – na verdade, é bem coerente. Mas a sensação é bem diferente do que se esperava.

Porém, aqui eu preciso fazer uma observação. Para quem acompanhou tudo, sabe que um dos pontos mais altos das duas últimas temporadas é o “arco de redenção” do tio de Satoko, Teppei Houjou, que sempre foi apresentado como um personagem abusivo e cruel. Por mais que a própria tenha manipulado os acontecimentos em benefício próprio para modificar a forma do próprio tio, ouso dizer que é um dos desenvolvimentos mais bonitos já vistos nos animes e que, de fato, nos faz pensar que até as piores pessoas podem ser salvas. De um monstro egoísta, Teppei se transformou em uma pessoa com o instinto paternal e sereno.

Um show à parte

Os traços da primeira temporada não são tão bons assim até mesmo para a época, pois tentavam replicar as características da visual novel sem se preocupar com as adaptações necessárias. Porém, isso foi sendo corrigido posteriormente e tudo fica mais fluído e bonito de se ver. No entanto, talvez seja um dos pontos mais fracos de Higurashi no Naku Koro ni.

Agora, quando falamos da trilha sonora e efeitos auditivos, este anime dá aula. A escolha das músicas de abertura é exemplar, traduzindo em poucos instantes a sensação que a história passa. E acredite quando digo que é desconfortável ouvir a forma magistral que os sonoplastas produziram sons de corpos sendo golpeados por bastões e lâminas, sangue escorrendo e tudo que é mais importante para causar a imersão. Até mesmo o uso estratégico de silêncios constrangedores é digno de nota. E não preciso sequer falar do espetáculo que cada dublador dá para seus personagens…

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