A trilogia de Jordan Peele e suas reflexões

Em 2017 o ator, diretor e roteirista Jordan Peele, saiu de sua zona de conforto ao lançar “Corra!”. Anteriormente conhecido por seus trabalhos na comédia, Peele surpreendeu a todos e marcou para sempre o gênero de terror.

“Corra!” acompanha Chris, que está no uma viagem para conhecer os pais de sua namorada Rose. A medida que o tempo avança coisas bizarras vão acontecendo com o tempo e o comportamento estranho das pessoas na casa vai incomodando Chris. O terror e o suspense do longa são construídos a medida que a história avança e os conceitos por trás do filme são apresentados. Fazendo com o que as passagens expositivas do roteiro não sejam tão óbvias.

Aqui é importante ressaltar, Chris é um jovem negro e a família de Rose é branca, então sim, “Corra!” é sobre racismo. Mas, Peele aborda o tema de forma nada óbvia, em nenhum momento Chris é tratado com hostilidade ou inferioridade. Ao invés disso, Peele carrega no seu roteiro sutilezas o bastante para não resumir racismo apenas como indiferença e vai além do ódio.

Tudo começa quando a mãe de Rose hipnotiza Chris, com a desculpa de ser uma terapia para o fazer parar de fumar, a sessão aflora em Chris um antigo trauma de infância. Fazendo assim ele afundar em sua mente e ficando inconsciente por uns instantes. Nessa cena temos um momento de atuação brilhante de Daniel Kaluuya, não atoa esse papel como Chris o rendeu uma indicação ao Oscar na época. O que ele faz com os olhos aqui é agonizante.

Após a hipnose tudo muda e Chris repara que todos os empregados, todo negros, agem de forma estranha. Aqui entrando o elemento de terror que pode ser uma referência ao clássico “Invasores de Corpos” onde você sabe que existe algo de estranho no comportamento humano mas ainda não sabe dizer o que. Fato que, após a sessão de hipnose, Chris foi posto em uma posição de subserviência, ficando a mercê de todos na casa pois após isso ele fica suscetível a gatilhos que o colocam em estado de transe.

O desenvolvimento de “Corra!” é tão interessante que aos poucos te coloca em certas armadilhas ao questionar se tudo têm uma certa lógica ao mesmo tempo que tudo pode ser prevista se sua atenção estiver no lugar certo. O grande trunfo é construir um ambiente acolhedor, fazendo uso do clichê estadunidense do subúrbio perfeito, que ganha um novo rumo durante o desenvolvimento do roteiro.

Uma outra crítica que vale ressaltar é quando entra o personagem Rod. Amigo de Chris e disposto a denunciar os absurdos que o amigo pode estar passando, Rod vai até a delegacia para relatar o desaparecimento de uma pessoa negra, e sua história é tão absurda que ninguém leva a sério. Trazendo assim a indiferença policial com uma dose de humor que consagrou Peele anteriormente, e que casa com o final do filme.

No fim, em meio a tanto desconforto, de olhares vazios e rostos congelados. Peele nos convida a fazer uma reflexão interna, quando literalmente, transporta a mente do protagonista para dentro de si, ele traz um olhar interno que pode significar uma reflexão sobre sua posição em tudo isso. Veremos agora que esse olhar reflexo é tema central das produções de Peele e ele o explora em diversas direções. Fazendo dele a marca registrada do diretor.

“Nós”

Sendo assim, trazendo um novo olhar para esse tema, apenas dois anos depois foi lançado “Nós”. Até então o mais comercial entre os três longas do diretor, “Nós” se aproveitou da expectativa criada em “Corra!” para trazer a inquietação, mais uma vez, por meio de comportamento bizarro. Na trama, a protagonista é Adelaide, que está em férias com sua família, seu marido e seus dois filhos. Mesmo a contragosto, Adelaide aceita ir a praia, onde acontece uma série de coincidências estranhas que a personagem acredita ser um mal presságio.

Quando retornam para a casa, as luzes apagam e eles são intimidados por invasores. Logo de cara Gabe, o marido de Adelaide, vivido por Winston Duke é subjugado pelos invasores que o acertam na perna com um taco de baseball.

Essa decisão é ótima, pois o ator Winston Duke é enorme e muito forte, ao ser o primeiro a ficar inválido reforça, mesmo que de forma fisicamente aparente a fraqueza diante da ameaça. Nesse ponto não é spoiler dizer que os tais invasores, são uma versão maléfica da própria família. É importante saber disso para entender o resto do filme e o que ele quer dizer.

Um problema que a maioria das pessoas podem encontrar com os filmes de Jordan Peele é que, de forma literal a  explicações nunca são claras e objetiva, por conta disso o longa só cresce após o sentido subjetivo. “Nós” é um ótimo exemplo disso, onde não temos nenhuma explicação lógica do surgimento da família inimiga, ou melhor não temos nenhuma explicação, sobrando apenas o significado não literal por trás dela.

Como dito anteriormente “Nós” é longa mais comercial de Peele, isso quer dizer que muitos clichês estão presentes aqui, mas nada que deixe a experiência menos interessante. A medida que avançamos na história tudo vai ampliando. Ao ponto de vermos que essa ameaça é global. Temos aqui novamente a crítica a polícia onde a personagem de Elizabeth Moss, agonizando, pede para a Alexa chamar a polícia, do original inglês “call the police”, ao que a assistente eletrônica entende como “fuck the police” música do grupo de rap N.W.A e que significa “foda-se a policia”.

Mantendo o bom desenvolvimento de seus roteiros. Peele caminha pela história mostrando que os clones, nada mais são do que clones, vivendo na parte de baixo de onde nós vivemos, todas as experiências que nós em cima  vivemos, os clones de baixo viverem mais de maneira mais precária. Saindo de cena então o racismo do filme anterior é entrando a disparidade social. O que acontece aqui é o ambiente moldando a pessoa, e formando aquilo que chamamos de caráter, pois a vilanka dos clones depende do ponto de vista e, como vimos na reviravolta final do longa, o ambiente foi determinante para definir os rumos de cada personagem.

Acredito que “Nós” é uma aposta no seguro. Ainda assim o considero um bom filme, tendo tensão e sendo divertido na medida certa. Apesar de não encontrar equilíbrio entra a subjetividade e o literal a visão de Peele é bem clara ao nos convidar dessa vez para olhar para baixa, ao invés de ignorar tudo que varremos para debaixo do tapete.

Expectativas elevadas

Após dois anos de muito trabalho, como esperado Peele cresceu na indústria. Peele começou a assinar projetos como produtor, assim como a nova versão de “Candyman” e o revival da série antológica “Além da imaginação” e, ao fundar sua própria produtora, a “Monkeypaw Productions” com um escopo maior de orçamento e ainda mais liberdade, assinando como diretor, roteirista e produtor, em 2022 lançou “Não, Não olhe!”

Chegamos no terceiro filme e algumas coisas vão ser chover no molhada. Temos aqui o ambiente calmo e acolhedor que vai ficando bizarro e tenso, a construção do terror através do desenvolvimento da história, assim como a construção do roteiro para o avanço e entendimento não só da trama mas do significado. Tendo isso entendido vamos a trama. Em uma certa manhã no rancho de criação de cavalos Haywood, uma moeda cai do céu e mata o pai da família, deixando os negócios para seus filhos Oj e Emerald.

Novamente, Peele repete sua parceria com Daniel Kaluuya e o ator mais uma vez entrega algo impressionante. Seu personagem, Oj é introspectivo e tímido, constantemente olha para baixo e dificilmente consegue lidar com pessoas. Kaluuya, fazendo uso do olhar, consegue transmitir toda vez que seu personagem reflete consigo mesmo transmitindo muito com tão pouco diálogo.

Em contra partida a personagem de Emerald, interpretada por Keke Palmer é o oposto. Energética é carismática, é o contrapondo perfeito para fazer Oj expor seus pensamentos para o público, e sua característica sonhadora serve de avanço para a trama. Após uma cena os irmãos desconfiam que algo ronda o rancho, algo que teria sido responsável pela morte do seu pai, os dois começam então uma jornada para tentar capturar em imagem o que seria.

Mais uma vez, Jordan Peele nos coloca em certas armadilhas. O início do longa temos uma cenário de uma sitcom, programa de TV humorístico clássico da TV estadunidense como “Eu a Patroa e as Crianças”,  totalmente destruido por um chimpanzé em fúria, chimpanzé esse que era o mascote do programa, e nessa cena temos como foca um sapato parado em pé. Reforço: o sentido subjetivo é mais forte que o literal, apesar do ocorrido nesse cenário de sitcom ter ligação com um outro personagem na trama, e também o acontecimento do chimpanzé nos ajude a entender o agente causador do rancho dos Haywood, o fato da cena focar em um sapato para em pé é intrigante, mas nunca é falado ou explicado.

A escolha do longa começar em um cenário de uma série de TV também traz um aspecto de homenagem ao audiovisual que o filme carrega. Além desse início temos uma divertida apresentação dos Haywood dando uma aula de história do cinema e expondo que eles são parentes do joker negro que cavalga um cavalo na primeira sequência de fotos que deu origem a primeira gravação de cena da história. Além disso, toda essa obsessão de capturar em imagens do que acontece no rancho, transforma o filme numa espécie de faroeste onde as câmeras são as verdadeiras armas da atualidade.

Sobre a ameaça do filme, temos várias pistas do que pode ser. A mais exposta no filme é de uma ameaça alienígena, fato que é algo voador que esta sempre acima. Com essa ideia de invasão alienígena Peele vai do óbvio como “Sinais” até a referências não tão óbvias como “Tubarão” ou “Um Lugar Silencioso”.

Ao contrário de “Nós” que a ameaça vinha de baixo, aqui ela vem de cima. Colocando os personagens a mercê de uma força opressora que vem, faz suas vítimas, e vai embora. Sendo assim o desafio do olhar é para cima, um ângulo que muitas vezes escolhemos não olhar por não querer pensar no que está acima.

“Não, Não olhe!” possui muitos elementos que prefiro resguardar, mas afirmo com tranquilidade que aqui Jordan Peele de forma consistente apresenta o melhor de si, com personagens muito bons, desenvolvimento de trama e criação de tensão e terror.

O que torna esses três filmes de Peele tão interessantes são os temas que os ligam e mesmo assim não ficando mais do mesmo. Apesar de “Corra!” ter o racismo, “Nós” ter a disparidade social e “Não, Não olhe!” ter a mídia como foco. O que liga essa, não oficial, trilogia é o aspecto do olhar, para onde esta voltado seu ponto de vista, se para si, para baixo ou para cima.

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