Como o caso Phineas Gage ajudou o desenvolvimento da neurociência

Imagine a sensação de ter uma barra de ferro atravessada na tua cabeça. Sua primeira reação pode ser pensar tipo “ok, eu provavelmente morreria depois disso”. Só que não foi bem esse o caso de Phineas Gage. Em pleno século 19, nos Estados Unidos, ele passou por essa situação: um acidente de trabalho fez com que uma barra de metal atravessasse sua cabeça, lesionando parte do cérebro.

E dá para imaginar que a vida deste cara não foi a mesma depois disso. De um homem sério e polido, ele passou a ser grosseiro e se interessar por prostitutas. Apesar desse problema gravíssimo, esse caso foi um marco dentro da neurociência, pois, pela primeira vez, foi possível constatar que o cérebro não é um órgão que funciona de maneira uniforme, mas sim através da atividade de diferentes regiões.

Quem foi a vítima

Phineas Gage nasceu em junho de 1823 em Nova Hampshire, nos Estados Unidos. Ele foi o filho mais velho do casal Hannah e Jesse Gage, sendo que eles tiveram um total de cinco filhos. Infelizmente, não se tem muitas informações disponíveis a respeito de sua vida antes do acidente que o levou a ficar famoso. Contudo, se sabe que ele era alfabetizado e sempre foi um homem responsável e educado, sempre sendo bastante cordial com as pessoas que convivia.

Os maiores detalhes a respeito de sua vida pessoal antes do acidente vieram do médico John Martyn Harlow, que o conheceu antes de seu acidente. O doutor o descreveu como sendo um jovem saudável, forte e ativo, tendo 1,68 m de altura e pesando 68 kg. Ele ainda foi descrito tendo uma “vontade de ferro, bem como uma estrutura de ferro”, pois seu sistema muscular era bem desenvolvido‍. Os relatos indicam que Phineas Gage tinha ficado doente apenas uma vez na sua vida antes do acidente.

Não se tem certeza também da data que ele começou a trabalhar com explosivos, mas provavelmente isso aconteceu durante sua adolescência em pedreiras e minas próximas de seu estado natal. Os fatos mais concretos sobre a sua vida pessoal param por aí e o resto é mais especulação do que algo mais comprovado.

O acidente

O caso que o deixaria famoso aconteceu quando ele tinha apenas 25 anos e trabalhava como capataz na construção de uma linha ferroviária no estado de Vermont, no nordeste dos Estados Unidos. Na tarde do dia 13 de setembro de 1848, ele estava comandando uma equipe de trabalho encarregada de explodir uma rocha para que uma estrada de ferro pudesse ser construída. Esse processo era bastante complexo, perigoso e braçal, sendo que envolvia perfurar essa rocha, acrescentar explosivo no interior e tampar para que a explosão ficasse concentrada e destruísse apenas a rocha em si.

Em um momento de descuido, Phineas Gage virou o rosto para falar com seus colegas e acabou que sua cabeça ficou alinhada com o buraco de explosão e com o ferro que servia para compactar o explosivo. Possivelmente devido algum erro no momento de preparar a argila que serviria para selar o buraco, acabou que esse ferro de compactação gerou uma faísca que ativou o explosivo dentro do buraco. Isso fez com que o metal pontiagudo fosse disparado contra a cabeça de Phineas Gage quase como se fosse um projétil de uma arma de fogo.

Essa barra acabou perfurando-o de cima para baixo, a partir da bochecha esquerda e saindo na parte superior do crânio. E aqui deve ser feito um esclarecimento: a barra não ficou “fincada” na cabeça dele como se presume, mas sim passou “reto” pela sua cabeça e chegou a cair 25 metros de distância do local que Phineas Gage estava.

Após a explosão, ele foi arremessado para trás e chegou a ter algumas convulsões, mas em poucos instantes ele se levantou quase sem nenhuma ajuda e subiu no carro de bois em direção ao alojamento. Durante todo o trajeto ele estava demonstrando calma, apesar dos companheiros de trabalho estarem apavorados com a cena. Cerca de 30 minutos após o acidente, o médico Edward H. Williams encontrou Phineas Gage sentado em uma cadeira do lado de fora do local que estavam hospedados. E aqui está uma tradução livre do relato deste médico:

“Quando cheguei, ele disse: ‘Doutor, aqui há negócios suficientes para o senhor’. Notei pela primeira vez o ferimento na cabeça antes de descer da carruagem, as pulsações do cérebro eram muito distintas. O topo da cabeça parecia um funil invertido, como se algum corpo em forma de cunha tivesse passado de baixo para cima. O Sr. Gage, enquanto eu examinava esse ferimento, estava contando aos espectadores a maneira como foi ferido. Não acreditei na declaração do Sr. Gage naquele momento, mas pensei que ele estava enganado. O Sr. Gage insistiu em dizer que a barra passou pela sua cabeça. O Sr. G. levantou-se e vomitou; o esforço do vômito expeliu cerca de meia xícara de chá do cérebro (pelo orifício de saída no topo do crânio), que caiu no chão.”

Mais tarde, por volta das seis da tarde, o médico de Phineas Gage, o doutor Harlow assumiu o comando do caso, apesar de o doutor Williams seguiu auxiliando. O tratamento foi quase todo documentado, então se sabe que naquele primeiro dia foram feitos curativos e drenagem de sangue coagulado. Além disso, devido ao fato de ter engolido muito do próprio sangue e massa encefálica, Phineas Gage acabava vomitando a mistura a cada 20 minutos. Foi registrado que, naquele primeiro dia, o paciente estava completamente consciente e otimista, dizendo para avisar aos colegas de trabalho que estaria de volta em alguns dias.

Porém, no dia seguinte, foram relatados delírios constantes, mas apesar disso ele reconheceu a própria mãe e o tio, que vieram visitá-lo. No quarto dia após o acidente, ele voltou a ficar consciente e racional e permaneceria assim até o décimo segundo dia, quando entrou em um estado de quase-coma. Neste momento, os médicos relatam que começou a surgir fungos e grandes quantidades de pus de suas feridas, da qual foram removidos e limpos.

Após isso, Phineas Gage passou a demonstrar uma rápida recuperação, sendo que no vigésimo quarto dia já dava alguns passos pelo quarto onde estava alojado. Um mês após seus primeiros passos, ele já conseguia andar normalmente, porém neste momento já estava demonstrando sinais de que sua personalidade havia sido alterada, apresentando um comportamento “mais infantil” de acordo com relatos.

Dessa forma, dez semanas após o acidente, ele foi enviado de volta para a casa de sua mãe em uma carruagem que normalmente se transportavam loucos na época. No final das contas, Phineas Gage aparentava apenas ter perdido a visão do olho esquerdo e ter desenvolvido uma cicatriz no topo de tua testa e na bochecha, mas nada que tivesse comprometido muito suas características faciais.

Após o acidente

O caso de Phineas Gage rapidamente começou a correr na sociedade da época e dentro da comunidade médica, sendo estudada por professores de cirurgia. Muitos médicos inclusive se recusaram a acreditar no que aconteceu. Ele também acabou fazendo aparições públicas como uma espécie de “atração” ao lado da barra de ferro que atravessou sua cabeça. E talvez esse fosse o máximo de um trabalho estável que conseguiu ter após o acidente, pois sua personalidade mudaria por completo dali em diante.

De um homem calmo e responsável, Phineas Gage passou a ser uma pessoa explosiva, agressiva e até mesmo profana. Isso é curioso, pois relatos afirmam que ele era bastante religioso antes do acidente. Ele também passou a ser inconsequente e rude, perdendo quase totalmente seu traquejo social perante as outras pessoas. Além disso, sua mãe relatou que suas memórias também pareciam “bagunçadas” após o acidente. Dessa forma, ele acabou tendo vários empregos ao longo dos anos seguintes até que em 1852 ele foi convidado para ser cocheiro na rota entre a Califórnia e o Chile.

Neste momento, até o ano de 1860, os relatos a respeito da vida de Phineas Gage são bastante escassos, mas se sabe que ele manteve com bastante dificuldade este emprego como cocheiro de mercadorias. O que se sabe é que durante este meio tempo seu comportamento violento e imprevisível persistiu. Ele tinha interesses constantes em prostitutas e continuava com seus comportamentos profanos. Ao perder o emprego, em maio de 1860, ele acabou voltando para a casa da mãe, mas dias depois teve alguns ataques epiléticos. Ele acabou falecendo no dia 21 daquele mesmo mês possivelmente de complicações posteriores de sua nova condição.

Contribuição para a neurociência

O caso de Phineas Gage é considerado um marco dentro por diversos motivos. O primeiro deles é que a comunidade científica tinha uma prova altamente documentada e testemunhada de que uma pessoa pode sobreviver a uma lesão cerebral severa. É claro que certamente deve ter tido outras pessoas antes dele que passaram por coisas parecidas e sobreviveram, mas não se tinha provas.

O segundo motivo para o caso de Phineas Gage ter sido tão emblemático é que, pela primeira vez, era possível comprovar que o cérebro humano não era um órgão uniforme, mas sim compartimentado. Além disso, passou a ser discutido o fato de que a personalidade humana é fruto do cérebro. Afinal, se um acidente é capaz de mudar como uma pessoa age no cotidiano por danificar o cérebro, a personalidade está então armazenada na cabeça. E também os cientistas passaram a dar atenção para o lobo frontal como região associada a características da personalidade de uma pessoa.

O acidente de Phineas Gage já foi simulado em computadores por pelo menos dois grupos de pesquisa. A análise mais recente, que foi feita em 2012, estima que ele perdeu cerca de 15% de massa cerebral, tendo a barra de ferro levado parte do córtex e parte dos núcleos internos do cérebro. Isso justifica as alterações de comportamento e perdas de memória, afinal foram danificadas regiões como o córtex pré-frontal que é parte importante na tomada de decisões e planejamento.

O caso é citado como um dos primeiros exemplos de como danos cerebrais podem ser associados a mudanças comportamentais específicas. Esse entendimento levou ao desenvolvimento da neuropsicologia, uma disciplina que estuda como as funções cognitivas e comportamentais estão relacionadas à estrutura e função do cérebro. Além disso, o caso de Gage influenciou a compreensão dos riscos associados à lesão do lobo frontal. Após o caso, também foi levantada a ideia de que, ao realizar procedimentos cirúrgicos no cérebro, era crucial evitar áreas críticas para evitar danos irreversíveis ao comportamento e à personalidade.

Em resumo, o caso de Phineas Gage desempenhou um papel fundamental na transição da visão do cérebro como uma unidade indiferenciada para a compreensão de que regiões específicas do cérebro têm funções específicas. Esse marco histórico influenciou a forma como a neurociência e a neuropsicologia abordam o estudo da relação entre o cérebro e o comportamento.

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