A majestade do universo de “Duna”

Quando o primeiro filme que adaptou “Duna” saiu no cinema, não tive qualquer interesse em assistir. A história não chamou minha atenção. Anos depois, quando saiu a segunda parte, um amigo veio me falar a respeito enquanto comíamos um lanche em um local que frequentamos há anos. Mesmo sendo uma amizade que remete os nossos tempos de ensino fundamental, eu não sabia, até aquele momento, que ele era um fã dos filmes e dos livros. Porém, mesmo assim, minha indiferença com relação a história seguiu inabalável.

Isso mudaria tempos depois ao ler um artigo que falava sobre a opinião de Tolkien a respeito de “Duna”. Ele admitia, em cartas, que não gostava dos livros, mas nunca esclareceu os motivos. Assim, de alguma forma, eu tive meu interesse pelos livros despertado após ler este texto. Providenciei um box com a primeira trilogia quando vi uma promoção e comecei minha leitura.

Assim que terminei o primeiro volume, minha sensação foi semelhante à de assistir “Code Geass” ou “Shingeki no Kyojin” – inclusive, coloco minha mão no fogo se tantas obras modernas não tiverem influência desta. A princípio, estes animes podem se passar por obras de aventura para jovens, mas seu desfecho é denso, trazendo consigo uma mensagem amarga. Desta maneira, talvez sejam histórias recomendadas para uma faixa-etária mais elevada, por mais que as premissas possam indicar que são obras juvenis.

“Duna”, por sua vez, também traz consigo uma história que pode soar como algo lúdico em um primeiro momento, mas nada é o que parece.

Em dado momento comecei a imaginar o porquê de Tolkien não gostar de “Duna”: ao contrário de “O Senhor dos Anéis” e outras obras que para ele eram caras, o universo criado por Frank Herbert é cinzento e questionável. O bem e o mal não são delimitados com clareza e, dessa forma, não há qualquer tipo de triunfo contra as forças das trevas ou uma mensagem de esperança e salvação. Através das areias de Arrakis, e das fronteiras dos demais planetas do Império, há apenas interesses, fanatismo religioso, perigos e uma mistura de sabedoria com loucura temperadas com especiaria. Estes elementos, sem dúvida, podem ser indigestos demais para o caráter catártico de Tolkien, mas tanto ele quanto Herbert foram geniais em suas próprias criações.   

Sei que “Duna” enfrenta algumas polêmicas com relação ao seu cânone. Após a morte do autor, seus filhos se encarregaram de continuar a história e isso incomoda alguns fãs mais “fundamentalistas” – o que é totalmente justificável. Curiosamente, citando Tolkien mais uma vez, este também é um problema com relação a obra dele e a publicação póstuma de alguns de seus livros editados por seu filho Christopher. Portanto, para tecer meu comentário a respeito da obra de Frank Herbert, estou me atendo apenas a primeira trilogia.

A majestade de um universo que transita entre sci-fi e fantasia

Um fato curioso a respeito das obras de ficção científica, de forma geral, é que elas sempre são baseadas na tecnologia e na ciência vigente no momento que foram escritos. Então, de forma natural, é quase como se tais narrativas “expandissem” o que se tem no momento, mas raramente conseguem especular uma “evolução” tal como ela acontece na vida real. Assim surgem estéticas muito charmosas e elegantes, como o retrofuturismo de obras como “Fallout”, “Bioshock”, “Blade Runner” e “Neuromancer”.

Contudo, vale a observação de que muitas obras de ficção científica correm o risco de caducarem com o tempo. Com isso em mente, um ponto a se observar sobre “Duna” é o período histórico que ele foi escrito (década de 1960). Naquele tempo, o conhecimento tecnológico e científico era consideravelmente inferior do que temos hoje, principalmente no tocante dos computadores.

Apesar disso tudo, é possível notar que Frank Herbert tinha noções bem sólidas com relação a perecibilidade de conceitos científicos momentâneos se aplicados a uma obra literária de ficção. Assim, as soluções para contornar este problema foram bem razoáveis. A primeira delas é o não-aprofundamento em questões técnicas e enfadonhas que tentam explicar a tecnologia da época que se passa a história. A segunda delas é justamente o fato de a história se passar em um futuro tão distante que é difícil para qualquer pessoa no presente imaginar como vão ser as coisas. A união destes dois princípios deixa a obra menos maçante e mais digerível.

Contudo, é de se notar que ainda assim o autor estava preso aos conhecimentos de sua época, como a citação constante de armas atômicas – um assunto bem recorrente em livros escritos durante a Guerra Fria. No entanto, é interessante ver como a imaginação do autor fez com que a tecnologia do universo de “Duna” “fosse tão longe que desse a volta”. Exemplo disso são os escudos corporais que repelem todos os tipos de projéteis, mas podem ser trespassados por armas brancas, como lâminas. Dessa forma, mesmo se passando milênios no futuro, os guerreiros são obrigados a voltar a aprender a lutar com facas, se tornando um dos elementos mais marcantes da história.

É impossível enquadrar “Duna” em qualquer outro gênero que não seja o da ficção científica, uma vez que os elementos que a caracterizam como tal são demasiados. Porém, a forma como tudo isso é construído faz com que, em muitos momentos, achemos que estamos lendo uma obra de fantasia.

Ao contrário de outras obras de autores consagrados no gênero, como Isaac Asimov, H. G. Wells e William Gibson, que usam elementos científicos como um fio condutor de toda a narrativa, Frank Herbet pega um caminho diferente. Ele toma emprestado premissas científicas para enriquecer e dar o pontapé inicial em sua história, mas não se apoia nestes elementos para conduzir a narrativa. Esta é outra vantagem que “Duna” possui, pois, assim, a história se torna relevante e agradável independente da época que é lida.

Pequenos defeitos de estrutura

Caso fosse necessário apontar os problemas de “Duna” seriam em sua estrutura textual confusa. Apesar de se notar o trabalho enorme que Herbet teve para construir seu majestoso universo, o mesmo não pode se dizer de sua escrita que, verdade seja dita, não é muito bem lapidada. É de se notar que isso foi sendo corrigido nos títulos posteriores – provavelmente fruto de um melhor aconselhamento editorial –, mas no primeiro título é gritante o quanto ele se deixou levar pela “escrita livre” em vários momentos.

Ao longo das páginas, vamos nos deparar com capítulos que são mostrados diferentes perspectivas quase que ao mesmo tempo. Se, em um momento, estamos lendo os pensamentos de determinado personagem, dois parágrafos depois estamos tendo acesso às considerações de outro. Assim, a leitura pode se tornar mais difícil, pois, não é difícil de se perder nas linhas de acontecimentos misturados.

Além disso, em diversos momentos não é possível entender com total certeza o que está acontecendo devido a algumas falhas de descrição. Exemplo disso são nos duelos, que são difíceis de se imaginar e precisamos recorrer a especulações de como tudo aconteceu. Isto quando estes deslizes da estrutura do texto não nos fazem ter dificuldades em compreender certos acontecimentos essenciais na história, nos obrigando a reler diferentes trechos para entender como determinados desdobramentos se deram.

Porém, mesmo com estes problemas pontuais de construção textual, que são tão importantes para um trabalho literário, a qualidade dos livros não é muito prejudicada por isso. Talvez, no máximo, “tire alguns pontos” caso nos coubesse a tarefa de avaliar tal como um professor faria, mas nada que fosse tirar a qualidade da obra como um todo.

Nada de bem ou mal: apenas tons de cinza

Uma das técnicas mais importantes utilizadas por escritores desde que a literatura existe é o contraponto. Este recurso é utilizado quando é necessário realçar as características de um personagem apresentando as inversas de um outro. Exemplo: para demonstrar o quanto um personagem é inteligente, mostre um outro dizendo ou fazendo algo estúpido. Ou então, para expor quanto alguém é maligno, exalte as virtudes de outro.

Assim, uma das características mais marcantes de “Duna” é justamente a ausência de qualquer tipo de contraponto entre os personagens. E isso é importante para alimentar as discussões e os dilemas morais que a obra se propõe a apresentar. No final das contas, ninguém tem as mãos limpas com nada e todos têm algo para se envergonhar. Talvez, o único personagem um pouco mais virtuoso que nos é apresentado seria o pai do protagonista. Contudo, ele morre cedo no primeiro livro e nem mesmo ele era tão honrado quanto aparentava – e certamente iria nos decepcionar se tivesse mais presença nas páginas.

No início, podemos até pensar que Paul Atreides, o protagonista, seria o típico personagem de “a jornada do herói”, no qual ele seria guiado em uma aventura e depois retornaria em toda sua glória com seu elixir. De certa forma, ele de fato tem seus momentos de “renascimento”, mas cada vez mais isso o vai transformando em alguém movido quase que puramente pela lógica fria e pelo fanatismo religioso criado entorno de seu nome. Contudo, não se sabe até que ponto o próprio Paul, mais tarde conhecido também como Muad’Dib, tem culpa de ser o que ele é. Isto porque ele é fruto de vários cruzamentos genéticos de dezenas de gerações e diversos acasos que acabaram contribuindo ou até mesmo o transformando definitivamente no que ele acabou virando. Portanto, por mais que haja a discussão se o protagonista é um herói ou vilão, nem mesmo ele tem totalmente culpa de ser quem ele é.

Os personagens que orbitam entorno do protagonista também possuem um caráter duvidoso em muitos momentos. Os implacáveis fremen, povos nativos de Arrakis, têm costumes e práticas que podem ser consideradas muito extremas e duras para quem vê de fora. Exemplo disso é o fato de nenhum corpo ser desperdiçado e todos os restos mortais serem reaproveitados para fazer água para a tribo. Por ser o elemento mais raro daquele planeta, a mínima quantidade é um bem precioso. Até mesmo chorar, principalmente para os mortos, é visto como um desperdício e o mero ato de o fazer é visto como algo de grande peso. Porém, até mesmo quando lideranças fremen assumem papéis importantes na corte de Muad’Dib, e a água não lhe falta mais, seus caráteres questionáveis seguem presentes e seguem cumprindo o jihad de seu líder.

Temos em “Duna” também um excelente destaque para personagens femininos que são de suma importância no desenrolar da história.

A primeira delas é a própria mãe do protagonista que, junto dele, foram uma das poucas sobreviventes do ataque fruto de uma traição dentro da Casa Atreides. Ela é uma mulher treinada na doutrina das Bene Gesserit, um grupo de mulheres que são vistas quase como bruxas e que tinham como objetivo o aperfeiçoamento genético até nascer um Kwisatz Haderach, que seria um “Bene Gesserit homem” com poderes muito além da compreensão – até a chegada de Paul Atreides e mostrar o perigo que um ser desses representa para o universo. O fato é que Jéssica Atreides é uma personagem cínica, mas fiel aos seus princípios e leal ao seu marido. Em vários momentos podemos reconhecer nela a pura essência “cinzenta” do universo de “Duna”, mesclando virtudes e misérias. 

Ainda falando da Casa Atreides temos Alia, a irmã mais nova de Paul que foi concebida pouco antes de ele e sua mãe terem que fugir para o deserto de Arrakis. Ela é um ser que passou por mutações quase místicas ainda quando estava no ventre da mãe e, por isso, também. Inclusive, Alia desempenha um papel central na queda do antigo imperador, mesmo sendo uma criança. Porém, seus poderes passam a se tornar um problema a partir do terceiro volume, por mais que tenha sido uma grande auxiliar de Paul em seu governo.

Por fim, seria impossível não falar a respeito das duas esposas de Muad’Dib: Chani e a Princesa Irulan. Enquanto a primeira é uma consorte que Paul conheceu dentre os fremen, sendo seu verdadeiro interesse amoroso, a segunda foi desposada apenas por interesses políticos. A relação entre os três é complicada, principalmente quando explorada ao longo do segundo volume da primeira trilogia. Mesmo após anos, Paul sequer nutriu qualquer interesse por Irulan e se manteve fiel em sua promessa de nunca a tocar. Porém, Chani vê o quanto este pensamento pode custar caro, uma vez que um herdeiro “não oficial” ao trono poderia enfraquecer o governo de Paul. É sugerido por ela, inclusive, que tenha um filho com Irulan, mas ele se recusa.

Algumas observações

É interessante a forma de Frank Herbert em dividir os capítulos através de trechos de outros livros presentes no universo de “Duna”. No primeiro volume, tais citações são tiradas dos livros escritos pela Princesa Irulan que, ao longo do livro, é uma figura enigmática, mas que no final vamos ser apresentados formalmente. Esse formato, por algum motivo, lembra bastante dos argumentos que eram escritos antes dos cantos dos poemas épicos, como “A Divina Comédia” e “Paraíso Perdido”, mas de uma forma um pouco mais poética. Além disso, a influência árabe e muçulmana para a construção da cultura dos fremen é evidente, tanto que vários dos nomes e termos são diretamente inspirados no idioma árabe.

Mas, é claro, seria impossível falar de “Duna” sem mencionar as criaturas que tornaram o universo tão icônico: os vermes de areia. Estes monstros nativos de Arrakis estão intimamente relacionados com a produção da especiaria que é tão importante para os desdobramentos da história. Porém, é válido notar que nos filmes, o tamanho de tais criaturas foi significativamente reduzido – creio que por razões técnicas de se reproduzir seres gigantescos na tela do cinema. É citado que um exemplar “pequeno” possuía 110 metros de comprimento, enquanto alguns poderiam ter 22 metros de diâmetro por mais de 400 de comprimento. São seres colossais que, talvez, ficassem até mesmo surreais se reproduzidos no audiovisual. Contudo, é louvável quanto o autor foi criativo ao inventar uma criatura tão icônica na cultura popular.

Outro elemento digno de nota, e aqui Herbert merece todo o crédito, é que ele vai completamente na contramão de outras obras que exploram o futuro. Um pensamento muito comum, que foi proliferado pelo Iluminismo, é que o avanço do conhecimento faria com que as pessoas fossem, aos poucos, deixando a religião de lado e migrando para um ateísmo ou agnosticismo. Assim, é razoável que escritores esbocem uma sociedade futurista na qual as crenças religiosas foram colocadas de lado.

Porém, em “Duna”, a religião exerce um papel fundamental na construção do universo. E o curioso disso tudo é que, de forma “irônica”, estas crenças desenvolvidas estão muito bem embasadas em conceitos científicos, ou então utilizam da ciência como ponto de partida. É quase como se Herbert estivesse zombando da ideia iluminista e esfregando na cara de todos que, por mais conhecimento e tecnologia se tenha, seres humanos vão continuar sendo o que são até o fim dos tempos, não importando qual planeta habitem. E sinceramente, isto é genial, ainda mais se tratando de uma obra de ficção científica.

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