Pouco antes do frio de 2022 tomar conta de Porto Alegre, e faltando pouco menos de dois meses para que eu completasse um ano de Zero Hora, Paulo Germano me contou que a poltrona da nossa copa pertencia ao Paulo Sant’Ana.
— Ele praticamente morava aqui dentro da redação, então chegaram a comprar aquela poltrona pra ele tirar um cochilo no meio da tarde. Antes ficava na sala dele, mas depois que ele morreu, levaram pra lá — ele explicou.
Aquilo foi um choque.
Com o meu frescor da juventude de um estudante de jornalismo, enchi o saco do colunista para que me falasse mais sobre aquela história. Ele é um cara educado e acabou fazendo isso enquanto finalizava o texto de um comentário para o Jornal do Almoço — ele deve ter pensado “pra quê eu fui falar isso para esse pentelho”. Júlia Soares, uma das editoras que participava da conversa, achou toda aquela minha emoção bastante curiosa.
— Tu é fã do Paulo Sant’Ana por um acaso, Gabriel? Por que tudo isso?
Minha resposta foi um dar de ombros vago por um simples motivo: nem eu sabia a resposta. Não sabia dizer o que senti, para dizer a verdade. Ao longo da vida percebi que meus sentimentos mais genuínos são sempre aqueles que nem a minha mais fria lógica e sarcasmo podiam exprimir em um texto como esse.
Comecei a trabalhar na empresa durante a pandemia, de forma remota no conforto (?) da minha casa, e na época dessa conversa, meu tempo de serviço presencial rivalizava com o tempo que passei ganhando meu espaço dentro do meu quarto. E logo na primeira semana indo para o prédio da Ipiranga percebi que não daria lucro algum para o nosso restaurante (conhecido carinhosamente por “Graxa” pelos funcionários), portanto passei a almoçar na frente do computador enquanto trabalhava — nada muito diferente do que faço desde o começo da adolescência. Meus horários de intervalo foram destinados à leitura ou estudo de russo ou japonês e, convenientemente, a copa da redação contava com uma poltrona bastante confortável para fazer isso. A dita poltrona de Paulo Sant’Ana.
E quem era ele para mim? Até aquele momento, achava apenas que era um velho louco que a minha mãe gostava de ouvir no Jornal do Almoço. E como ela sempre teve um gosto duvidoso para produtos culturais, desconfiei que deveria ignorar a existência dele. Uma das minhas lembranças mais antigas dele não era exatamente do homem em si, mas de uma paródia de stand up que André Damasceno fazia d’ele — imitação digna de nota, que me fez rir muito na infância mesmo sem eu entender muito bem o contexto da coisa toda. Aliado a isso, eu nunca ouvi qualquer um dos meus chefes e colegas mais velhos falando bem dele, então era tudo algo a ser deixado de escanteio nas minhas preocupações.
Até esse dia em particular.
Cheguei a fazer uma postagem em meu Instagram ironizando a coisa toda no mesmo dia que descobri o dono do assento. Recebi algumas respostas bem humoradas, mas o assunto morreu logo em seguida — a não ser entre um grupo bem seleto de pessoas que ainda tiravam sarro da minha cara sobre isso. Mas o fato é que ainda não sabia ao certo quem era aquele velhinho mal falado pelos colegas, idolatrado por grande parte do público saudoso e desrespeitado por ninguém. O máximo que lembrava com clareza sobre Paulo Sant’Ana era uma matéria do Jornal do Almoço que ele “se demitiu ao vivo” que foi passada em aula por um professor.
Meu chefe chegou até comentar que as faculdades de jornalismo andavam muito fracas nos últimos tempos e eu concordo com ele. Só que, nesse caso, foi parte de negligência minha mesmo. Eu não faço isso por mal: tenho a filosofia de que as coisas mais importantes sempre vão ser aprendidas no momento certo. E ainda acredito nisso.
O primeiro texto que li de Paulo Sant’Ana foi “A magia dos pés”, que foi publicado em 2002, mas curiosamente é uma das mais recentes em GZH. Foi naquele dia mesmo que eu descobri sobre a poltrona, por sinal. Comecei a ler aquela crônica pensando que se tratava de mais um delírio de um velho louco, apesar de bem escrita e poeticamente sensual. E aquilo me atingiu fundo, uma vez que tenho uma podolatria semi-conhecida. Não sei quando ela começou, se foi fruto de algum fenômeno freudiano de minha infância (da mesma forma que penso ter surgido minha fobia de animais mortos, como ratos e pombos). Só que era como se ela, a crônica, tivesse sido feita para mim — afinal de contas, aquela poltrona servia para meus objetivos de intervalo como uma luva. E assim como foi um choque ter descoberto que estava sentado e lendo na poltrona de Paulo Sant’Ana, o choque de ter lido um texto daqueles foi como se tivesse escavado um pequeno dracma de prata perdido nas areias da praia mais chinelona. Ainda me pergunto se ele seria um adepto a comprar os famosos “pack do pezinho” e não tenho uma resposta pra isso — não que eu faça isso, para deixar bem claro.
Não vou dizer que concordo ou gosto de todos os textos do velho louco, mas eu entendo agora o porquê d’ele ter sido o fenômeno que foi. “Amado por uns, odiado por outros e desrespeitado por ninguém”, foi como o meu barbeiro me definiu outrora e assim como eu defino Paulo Sant’Ana. Isso, é claro, enquanto sigo lendo e estudando sentado em seu pequeno trono encomendado que agora é compartilhado pela redação inteira. Talvez ele se revire no túmulo cada vez que um colorado encosta o rabo no assento que um dia foi ungido pelo “torcedor símbolo do Grêmio”.
Talvez um dia eu descubra isso. E David Coimbra certamente já deve ter descoberto.
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